Blogosfera, conteúdos, comentários, calúnia e difamação. Conceitos de jurisprudência.
«O TGI francês conclui que a Fundação Wikipédia não pode ser considerada culpada e responsável pelos conteúdos, dado que a enciclopédia é um espaço que alberga artigos. Além disso, concluíram os juízes, os conteúdos sobre as preferências dos três queixosos não podem ser considerados “manifestamente ilícitos”. Isto porque, o TGI entende que só os conteúdos referentes a pedofilia, pornografia, racistas ou de estímulo ao nazismo é que são tidos como “manifestamente ilícitos”. E em casos como estes, a justiça francesa manda a Wikipédia apagar os artigos em causa (mesmo assim não condena a enciclopédia a qualquer indemnização, apenas ordena a retirada dos conteúdos).
O tribunal entendeu que, dado que a fundação não exerce controlo sobre os conteúdos, a mesma não pode ter responsabilidades editoriais”, explicou Lionel Thoumyre, director da revista online Juriscom.net.» (DN)
No excerto acima, onde se lê “a fundação”, leia-se “o autor do blog”, e onde se lê “os conteúdos”, leia-se “os comentários”.
Algumas mentalidades mais pidescas ou, simplesmente, bacocas, poderão contra-argumentar que, ao contrário da fundação que gere a Wikipedia, o autor de um blog “exerce controlo” sobre os comentários que os seus visitantes colocam. Pois sim, mas não. Isso apenas sucederá nos casos em que os comentários sejam moderados(***); se não houver – como não tem forçosamente de haver – nenhum mecanismo de “moderação” de comentários, o autor do blog tem tanto a ver com os comentários aos seus posts como o dono de um muro com as “pichagens” que alguém ali rabisque. Se assim fosse, então o proprietário de qualquer tasca, café ou restaurante seria criminalmente responsabilizado pelas inscrições que sistematicamente surgem nas casas-de-banho lá do estabelecimento; até o Estado seria levado à barra dos tribunais, como responsável pelas imaginativas “bocas” estudantis, em tudo quanto é superfície livre nos sanitários das escolas, dos hospitais, das universidades, das repartições públicas; levada a coisa ao extremo, o Juiz da comarca de Freixo-de-Espada-à-Cinta, por exemplo, poderia ser julgado, na sua própria barra e por si mesmo, em pessoa, como responsável pelos insultos que alguém escrevesse no urinol do Tribunal.
O ridículo tem limites. Esta notícia do DN, que reproduz o fundamental do anunciado pelo Le Monde (Wikipedia, ni coupable ni responsable), é de facto excelente, se quisermos arrumar de vez com a questão. Será pouca jurisprudência, para o caso, mas é alguma, é seguramente melhor do que nenhuma e poderá, finalmente, pôr desde já em sentido os testa-de-ferro securitários que por aí pululam.
Não tenhamos ilusões. O que move essa gente não é, de forma alguma, o seu apego à verdade ou o seu declarado amor à transparência. O que está por detrás da tentativa de responsabilização dos autores pelos comentários nos seus blogs é, a curto prazo, a eliminação administrativa do anonimato na blogosfera; se não existissem comentários “anónimos”, pela mesmíssima ordem de razões, muito menos poderiam existir blogs “anónimos”; isto teria como consequência, a médio prazo, a liquidação pura e simples daquilo que, tendo fraquezas, é a sua maior força: a denúncia dos poderosos pelos fracos.
Não tenhamos ilusões, repito. As eminências pardas que manobram do escuro para que a blogosfera seja silenciada, estão-se positivamente nas tintas para a “lisura” de intenções, para a “transparência” de processos ou mesmo para qualquer espécie de “responsabilidade”, seja ela individual ou social; aquilo que lhes interessa, em exclusivo, é a sua própria impunidade, é a sua eternização no Poder, é, em suma, que seja proibido, proscrito, ilegal, impossível alguém apontar-lhes seja o que for.
Aceitar as motivações pretensamente legalistas ou as angelicais motivações dos securitários, tragar-lhes o paleio higiénico e com isso deixar que encerrassem este espaço de liberdade, seria o mesmo que pintar de negro todos os muros do mundo, todas as paredes e portas, e, em última análise, todas as vozes, porque incómodas, e todas as consciências, porque independentes.
Um “graffiti” é crime, e bem, porque destrói propriedade privada (um muro, uma parede) e propriedade colectiva (o ambiente, a paisagem). Um comentário a um post não é propriamente um “graffiti”, mas enfim; o comentador também não se poderá furtar às respectivas consequências, se e quando a elas houver lugar; mas nem o autor de qualquer post nem o dono do muro ou da parede podem assumir responsabilidades alheias, sejam elas individuais ou colectivas. Se as autoridades não “caçam” o “grafiteiro” em flagrante, não podem fazer nada; se não sabem quem é o comentador “atrevido”, paciência; cabe ao dono do blog, como ao dono do muro, apagar aquela porcaria toda. Em alternativa, as próprias entidades apagarão a “pichagem” e o alojador do blog fará outro tanto. Nada mais.
O que diabo terá isto de complicado? Que parte de “nada mais” é que não entendem?
(***) Mesmo assim, mesmo havendo sistema de “moderação” de comentários, a responsabilidade do “dono” do blog é limitada, vigorando o mesmo princípio de que a responsabilidade pelo comentário é do comentador e não do autor do blog. Ou pretende-se serviços de polícia de costumes e de mesa censória grátis?
Artigo citado: «Wikipedia absolvida do crime de difamação», DN de hoje, secção “Media”