Vai por aí um chinfrim dos diabos. Um tal Pedro Arroja, do qual, por acaso, já muito tinha ouvido falar e absolutamente nada tinha lido, deu-se à maçada de presentear a humanidade com a sua verve (ou lá o que é).
Diz ele, entre outro palavreado de pretenso fino recorte, que
foi na Península Ibérica que os judeus foram melhor acolhidos e tratados ao longo de toda a sua longa história, por entre os múltiplos povos e lugares em que viveram. É claro que, mesmo aqui, acabaram por dar motivos para serem expulsos, primeiro de Espanha (1492), e depois de Portugal (1521). Mas isso foi o que eles fizeram em todos os países que os receberam durante a sua história de milénios. E que voltam agora a fazer em Espanha, mais de cinco séculos depois. Está-lhes literalmente na massa do sangue.
Lindo. Caiu-lhe o Carmo e a Trindade em cima, porrada da grossa, toda a gente a querer molhar a sopa em tão suculentos lombos, enfim, a coisa caiu que nem ginjas para quem aprecia polémicas finas.
Ora, a mim quer-me parecer que a coisa até não está assim tão mal escrita. Vá lá, esperava bem pior; a avaliar pela fama que precedia semelhante figurinha, está certo que bem melhor estaria se tivesse continuado a não lhe ler coisa nenhuma, mas pronto, assim ficamos esclarecidos: se aquilo é Português, eu vou ali e já venho.
Já vim. Ó caros, mas afinal qual é o problema? Então não é verdade que foi na Península Ibérica o sítio onde “os judeus” foram melhor acolhidos e tratados? Aliás, a dita península é famosa pela forma como trata e acolhe toda a gente, sempre assim foi e sempre assim será, até porque isso está na massa do sangue dos povos ibéricos. Pois não? E não é igualmente inegável que os mesmos “judeus” acabaram por dar motivos para serem expulsos, primeiro de Espanha (1492) e depois de Portugal (1521)? Ora vejamos: foi ou não foi rigorosamente assim? Então? Pois não é isso, andar por aí a expulsar as pessoas, uma característica ibérica, uma idiossincrasia própria dos portugueses e dos espanhóis? Não somos nós conhecidos precisamente por esta espécie de dicotomia, este acolhe e expulsa, este recebe e emponta, este contraditório e maniento hábito de muito bem receber e de melhor ainda pôr no olho da rua? Também isso nos está na massa do sangue, é o que é.
Ora, ora, essas coisas não interessam para nada. Nem vejo, sinceramente, onde é que está o motivo para tanto escândalo. O tal Arroja não estaria lá nos seus dias, por certo, mas enfim, releve-se a frasezinha mal construída, a putativa baralhação das ideias e tudo isso. O estilo é pobrezito, a redacção – sejamos condescendentes – estrondosamente primária, e tal, mas o importante é que a mensagem, seja ela qual for, realmente passou: qualquer um pode escrever aquilo que lhe der na bolha, nesta coisa dos blogs, sem que absolutamente nada de mais desagradável lhe possa suceder. Desde que, evidentemente, esse qualquer um não seja um qualquer. Note-se que a matéria de facto, jurídica e tudo, naquele post em particular, prefigura manifestação e difusão de ideias racistas e xenófobas, e nem por isso as autoridades – sempre atentas à menor mijadela fora do penico, em se tratando de mijão anónimo ou mesmo de irrelevante cagão – se chatearam um bocadinho com o assunto.
Fosse um outro idiota qualquer a publicar as mesmíssimas coisas, num dos milhares de blogs virtualmente anónimos que por aí fervilham, e por certo o gajo já estaria neste preciso momento com um processo às costas ou, quem sabe, devidamente engavetado para averiguações e apuramento de responsabilidades.
Assim, não. Como não é um palerma qualquer quem debitou aquelas palermices todas, é este, é o tal Pedro Nãoseidasquantas, esse Pedro que arroja pedras, bom, assim sendo não lhe sucede nada de chato (1), pelo contrário, à conta disso muito mais gente agora o conhece, e lê, e discute, e apoia, e até ataca. Um mimo.
Pois. Também isso nos está na massa do sangue: adoramos a nossa polemicazinha (2), idolatramos os nossos palerminhas, bebemos-lhes devotamente todas as enormidades. Seremos, porventura, uma cambada de necrófagos que adoram matéria escrita pútrida e em decomposição. Já não é apenas de massa de sangue que se trata, portanto; é também de veias, e órgãos e músculos e esqueleto. É dessa massa que somos feitos. Todos.
(1) A Blogger prevê o incitamento ao ódio, com base em raça, religião, etc., como motivo suficiente para o cancelamento de uma conta de utilizador. Até existe, em Portugal, um impresso para bufar situações destas.
(2) Sobre a questão ortográfica, essa sim, séria, da acentuação em étimos com sufixação em zinho e em mente, leia-se este excelente post do blog Língua à Portuguesa.