Quando se pergunta a alguém por que razão há tantos fogos neste país, toda a gente aponta sempre os mesmos motivos. Que são cinco, os principais. Uma mão-cheia a saber:
– Há por aí muitos incendiários, muitos pirómanos, e alguns deles até fazem negócio com isso de tascar fogo às matas.
– Existe especulação imobiliária, até porque deve ser bem rentável mudar o metro quadrado, por exemplo, de terreno agrícola para industrial .
– Descuido. Diz que há muito descuido por esse país fora, desde os arraiais com foguetório até à simples beata de cigarro que se atira para o chão à desprezo.
– Interesses empresariais: das celuloses aos madeireiros, consta que a madeira ardida rende bons lucros a muita gente.
– “Falta de limpeza” das matas e da floresta.
Ora, mesmo dando de barato o estranhíssimo facto de as nossas Forças Armadas pouco ou nada se ralarem com o assunto, e por certo a situação não seria tão dramática se houvesse uns 30 ou 40 mil soldados a combater os fogos, no fim de contas a sensação com que se fica é que aquelas cinco ordens de razões são… curtas. Mal amanhadas. Falta ali qualquer coisa.
É claro que existe falta de civismo, mas isso é coisa antiga, verdadeira idiossincrasia nacional de que muitos fazem até gala; os foguetórios continuam, mais ou menos clandestinamente, bem como as queimadas e outros desmandos “rigorosamente proibidos”.
É claro que existem incendiários, e isso não é de agora, por regra pobres diabos a quem basta pagar uns copos ou uns cobres, poucos, para que se dediquem a chegar o lume a restolhos.
É claro que os negócios com terrenos, e em especial com a sua classificação, constituem uma parte nada despiciente da questão.
É claro que, pelo menos pontualmente, alguns interesses particulares poderão estar ligados e, de certa forma, ter algo a ver com a questão: será o caso, por exemplo, das indústrias ligadas à celulose e às madeireiras em particular.
E é também claro, por fim, que a propagação do fogo seria muito mais difícil se não houvesse mato rasteiro entre as árvores.
E no entanto, mesmo sem ser necessário recorrer a grandes exercícios de raciocínio lógico, não será muito provável, ainda que arda várias vezes, que uma parcela de área protegida deixe de o ser automaticamente assim que o respectivo coberto vegetal desapareça de todo; na maioria dos casos, nem daria lá muito jeito montar um parque industrial, um campo de golfe, um condomínio fechado ou uma simples urbanização em pleno descampado, algures no Portugal profundo.
E contudo, ainda, não consta que ande por aí, de forma minimamente organizada, algum grupo de pirómanos; muito menos se tratará de um verdadeiro exército de incendiários; e este, mesmo se armado de velas de estearina e caixas de fósforos a granel seria capaz de competente e exaustivamente – passando sempre incólume e despercebido – fazer eclodir tantos, tão dispersos e tão violentos focos de incêndio. Aliás, as próprias autoridades atestam que «maioria dos fogos investigados pela PJ não tem mão criminosa.»
E todavia, por fim, também não parece lá muito credível que o simples “descuido” ou a falta de civismo sejam suficientes como explicação para tal e tão sistemática razia nas nossas manchas florestais; ano após ano, uns quantos cigarros mal apagados, quiçá atirados por viajantes descuidados pelas janelas das suas viaturas, ou mesmo um ou outro foguete incandescente de qualquer arraial popular, enfim, esse tipo de coisas não será – de todo – razão suficiente para explicar todas as ocorrências nos mais diversos locais… ou sequer numa boa parte deles.
Resta apenas um “mas”, se quisermos rebater exaustivamente as cinco razões geralmente aduzidas para “explicar” os incêndios, e esse “mas” é este: mas que diabo de país é (ou seria) este, se as próprias indústrias nacionais – algumas com participação do Estado – destroem património nacional em função dos seus interesses empresariais? Impossível…
Claro que alguma coisa de tudo isto há-de ter, pelo menos e como qualquer mentira que se preze, algum fundo de verdade. É bem possível, de facto, que alguns fogos sejam ateados por descuido, por incúria, por pura estupidez; pode ser que por detrás de outros haja mesmo mão criminosa, a mando de interesses obscuros (e dificílimos de provar) ou devido a simples distúrbios de quem pratica esse crime; e admitamos até que, pelo menos em redor das habitações e estruturas, se devesse limpar o mato rasteiro para impedir a propagação do fogo.
Pois mesmo assim, depois de tudo visto e considerado, ainda resta uma terrível, inquietante, alarmante dúvida: e se, afinal, o principal motivo para explicar esta desgraça estival for que apagar fogos é… um negócio apetecível?
Por acaso alguém sabe quanto custa cada litro de água despejado por um helicóptero? Aliás, quantos portugueses estarão cientes de que os contratos com as empresas de combate a incêndios são assinados com base não nas horas de voo mas no número de litros de água largados do ar?
Porventura alguém terá tido até hoje ao menos a curiosidade de apurar quanto custaram, no total e por época, os meios aéreos deste tipo?
Por que razão são pilotos particulares e não os da Força Aérea a pilotar aquelas aeronaves?
Se o Estado comprou as suas próprias aeronaves especializadas, qual o motivo para o recurso sistemático a novos alugueres? E porquê uma vez, e outra e outra, infindável e casuisticamente, como se não houvesse qualquer espécie de planeamento?
Pois bem, pelo menos para duas destas perguntas há respostas. Disponíveis para qualquer um.
1. De acordo com os números do próprio Ministério da Administração Interna, «O preço por litro de água largada» por um helicóptero num incêndio custa, no mínimo, 21 cêntimos. O dobro do preço do litro de água mineral no grossista.
2. Os custos totais com os meios aéreos de combate a incêndios, entre 2002 e 2006, foram publicados pelo jornal Correio da Manhã; a progressão foi respectivamente de 11,6 – 14,2 – 14,1 – 21,3 – 30 milhões de Euros.
Perguntar não ofende, como sabemos.
Qualquer cidadão, por mais leigo que seja em determinada matéria, tem todo o direito a fazer as perguntas que entender, sendo certo que não é a ele que devem ser exigidas as respostas ou assacadas as responsabilidades.
E tanto pior para quem a essa exigência está sujeito se essas perguntas do mais comum dos cidadãos já contiverem em si ao menos a génese das respostas.