É de saudar o princípio do diálogo crítico e argumentativo, como um enriquecimento para todas as partes envolvidas que, a saberem ler e ouvir, questionam para perceber melhor. Confesso que foi na melhor das expectativas que principiei a ler a carta de leitor redigida por “M. Gaspar Martins” (M.G.M.) reportando-se ao meu artigo “O Manifesto de Girona e os fatos com-seus-medos“, publicado neste jornal a propósito do Dia Mundial da Língua Materna (21/2/2013). Essas expectativas tinham a ver com a grande perplexidade ali expressa no que diz respeito aos estragos e dissensões causadas por uma medida que nunca será pacífica. E com a sincera preocupação face ao sofrimento de quem tem, por razões de sobrevivência no seu posto de trabalho, de ceder à imposição do AO pelos seus superiores.
Espera-se ainda a resposta à pergunta básica que qualquer leitor atento do meu artigo não pode deixar de colocar e que ainda não foi satisfatoriamente respondida: Qual a necessidade de um “acordo” que se tornou num evidente desacordo? Para que o debate tenha um conteúdo que vá além do “porquessinismo” assertivo e recorrente dos defensores da aplicação do Lince, essa argumentação deveria vir a montante de tudo o resto. A alegada confusão entre ortografia e oralidade, que me é imputada, ou é uma caluniosa mentira ou uma prova de preocupante iliteracia – porque é precisamente M.G.M. que nela incorre. Como pode uma autora, que defende o princípio etimológico como sendo estruturante de uma língua, confundir a rectidão da escrita (orto-grafia) e a oralidade volátil, modulada segundo hábitos regionais? É esta, como defende M.G.M., que deve pautar a correcção da grafia? E que têm os acordistas a dizer com respeito às facultatividades – será que “facilitam a escrita”, como muitos afirmam?
Claro que alguém que esteja afincadamente aplicado em usar o AO (e o tenha lido) não escreve “fato” por facto. Mas poderá M.G.M. demonstrar que ninguém o faz e que nunca viu tal coisa – e mais “contato”, “impato” e outras calamidades? Aconselha-se uma visita a essa “alfaiataria” do Estado, o DR, onde pululam fatos em vez de factos. E com que ligeireza se pode afirmar que não se pronuncia o c de sector, factor, etc.? Há quem o faça porque assim aprendeu – a falar bem. E já agora, M.G.M.: leia as frases até ao fim e não confunda interrogações com afirmações. Mas saberão os acordistas interrogar-se, tão cheios das suas convicções?
A falácia da separação entre emoção e razão é facilmente desmontada pela perspectividade de cada afirmação. Todas as manifestações de objectividade são resultados de processos de objectivação, para o qual concorre toda a espécie de elementos, formais e sensoriais, portanto racionais e emocionais. Ignorar porém os paradoxos inerentes a qualquer realidade complexa (e a ortografia é-o) é dar provas de um reducionismo que só pode sobreviver na assertividade. E que há de mais “emocional” do que a obsessão ditada por certezas absolutas? Como pode M.G.M. afirmar, com veemência de vidente após ter consultado a bola de cristal, que amanhã os nossos netos nos chamarão analfabetos?
Last but not least. Chapéu ao PÚBLICO por ter contribuído para a desmontagem de outra certeza absoluta de M.G.M.: a certeza da não publicação da sua prosa que foi, acima de tudo, uma oportunidade perdida de defender a bondade do AO e do princípio da oralidade como determinante para a ortografia, o que talvez tivesse convencido alguns leitores, ensinando coisas novas que muito se agradeceria. Assim, temos apenas mais do mesmo: a defesa do acordismo num mundo de vontade e representação.
Teresa Cadete
Professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente do PEN Clube Português
[Transcrição integral de artigo, da autoria de Teresa Cadete, no “Público” de 11.03.13. “Link” disponível apenas para assinantes do jornal “online”.]