[Nota: na transcrição que se segue, para facilitar a consulta sem prejudicar a leitura, todos os “links” abrem em nova “janela”.]
Quando lhe perguntavam se era a favor ou contra o Acordo Ortográfico (AO), ele, para ser franco, respondia sempre que lhe parecia um desperdício, um embuste, uma fraude, que a ortografia já evoluíra de diferentes formas e que o importante era entendê-las a todas e pronto. Em geral ficava-se por aí. Até que um dia, como sucede aos incréus perante as bem-sucedidas tentações de uma qualquer religião, indicaram-lhe um endereço e ele viu a luz. Sim, deixou-se literalmente encandear pela súbita revelação da novidade. Estava ali, aos seus olhos, tudo o que não vira quando se juntara aos protestos anti-AO, quando andara em colóquios, distribuíra panfletos, abaixo-assinados, cartas de protesto e indignação. Afinal era aquilo. Podiam-lhe ter dito que ele talvez ponderasse, reflectisse e agisse em conformidade. Chegou-se ao computador e digitou http://lusofonia.com.sapo.pt/. Viu muitas caras de escritores e achou natural: a língua escrita, património comum, etc. Mas do lado direito viu um botão intitulado “Colóquios da Lusofonia”. Seguiu por ali, como lhe tinha sugerido uma alma bem-pensante. E, no meio de imagens aos pulinhos, siglas, um arco-íris escondido por detrás de uma árvore, eis que se lhe desvendou um mundo novo aberto à língua portuguesa: o da recreação. Lá estava (e lá está, ainda, para quem queira consultar) a lista das viagens, as condições hoteleiras, a ementa, as reservas de quartos, tudo. E, claro, o programa do mais recente colóquio, o sarau musical, tudo como deve ser.
Parecia, e parece, uma coisa feita por principiantes no manejo de computadores, mas deve desculpar-se tal insignificância diante do alcance da coisa. Que, aliás, está contada a preceito num documento intitulado “Historial dos Colóquios da Lusofonia”. É só clicar noutro botãozinho, do lado esquerdo do ecrã (AICL historial), e surge um PDF de 13 páginas assaz elucidativo. Escrito na primeira pessoa, embora sem assinatura, explica ao recém-chegado que são “uma associação cultural e cientifica [assim mesmo, sem acento, mas não se pode exigir tudo] sem fins lucrativos”, “um exemplo da sociedade civil atuante em torno de um projeto de Lusofonia sem distinção de credos, nacionalidades ou identidades culturais”. Ora o “exemplo” faz colóquios. Que “juntam os congressistas no primeiro dia de trabalhos, compartilhando hotéis, refeições, comunicações, passeios e, no último dia, despedem-se como se de amigos/as se tratasse”.
Não está bem escrito, longe disso, mas não se pode exigir que quem pugna pela unidade da língua se preocupe ao mesmo tempo em escrevê-la bem. É uma sobrecarga terrível, nem calculam. Mas adiante. À nona linha já o autor está a citar Martin Luther King para explicar que em dez anos já fizeram 18 colóquios. Não se percebe a analogia com o sonho de King e menos ainda que a citação seja errada: “I had a dream” em lugar do muito conhecido e difundido “I have a dream…”. É só um pormenor, que para o efeito (o das viagens e alojamento) não importa absolutamente nada. O que importa, na verdade, é que aos 18 colóquios já realizados o grupo quer juntar muitos mais e, “depois do Brasil, Macau e Galiza quer voltar ao Brasil, ir aos EUA e Canadá, Cabo Verde, Roménia e outros países”. E que países?, quis ele saber, lendo avidamente o documento. “Roménia, Polónia, Bulgária, Rússia, Eslovénia, Itália, França.” Tudo pela divulgação da “açorianidade literária”, pretexto mais imediato (hoje mesmo o grupo está de visita aos Açores, já agora) e, claro, pela “unificação da ortografia” consagrada no AO. O que se percebe, porque os turistas, perdão, os padroeiros da bendita causa, são precisamente os “pais” do AO, Malaca Casteleiro e Evanildo Bechara, com uma pequena mas robusta corte de acompanhantes.
Ah, pensou ele, relendo o documento, como é alegre a “expansão da língua”! Que rotas, que paisagens, que oportunidades de conhecer novos mundos! E tudo a sair do bolso dos inscritos, claro, não venham já caluniar… Mas com “apoios protocolados para cada evento” e tentando, “ao nível logístico”, “beneficiar do apoio de autarquias com visão para apoiar a realização destes eventos”.
E foi assim que ele, vendo finalmente a luz da letra viajante, resolveu aderir ao grupo dos excursionistas da língua. Parece que até em Bora Bora há gente interessada no AO, sabiam?
Nuno Pacheco
[Transcrição integral de artigo da autoria de Nuno Pacheco publicado na revista “2” (suplemento do jornal “Público”) de 17 de Março de 2013, página 40.]