O que se segue é uma transcrição anotada (4.ª parte, ver 1.ª , 2.ª, 3.ª) do depoimento de José António Pinto Ribeiro, advogado, ex-Ministro da Cultura, perante o Grupo de Trabalho parlamentar sobre o AO90 em audição realizada em 23 de Maio de 2013.
A transcrição (de gravação áudio) foi realizada por Hermínia Castro e as anotações, comentários e “links” são da autoria de Maria José Abranches.
Gostava de, relativamente ao problema da revisão ortográfica, o problema de se saber o que é que se faz e o que é que não se faz, que me colocou, eu gostava de dizer o seguinte: em primeiro lugar, houve grandes revisões ortográficas nos últimos anos, nos últimos quinze anos, em muitos países.[“grandes revisões”, “em muitos países”: muito vago…; revisões, reformas ou acordos? É que os objectivos, os participantes e a dimensão não são idênticos…] [E o que significa “grandes revisões”? Também houve “pequenas revisões”? E o que significa “muitos países”? 10? 20? 2? 1? (*)]
As regras de revisão ortográfica são sempre destinadas a fazer aquilo que se diz a propósito da Academia Espanhola. A Academia Espanhola foi fundada com o seguinte propósito: limpar, fixar e dar brilho à língua. Portanto, limpar, fixar e dar brilho à língua. E esta lógica de limpar, fixar e dar brilho à língua é, digamos, aquilo que tem levado a generalidade dos países a fazer revisões [não é sinónimo de “simplificar”, eliminar letras e acentos à toa, retirando à língua as suas raízes e inteligibilidade] .
A língua alemã, eu, por razões da minha vida, falo alemão mais ou menos como falo português, é uma língua complicadíssima também graficamente. Tem letras que não existem em mais sítio nenhum, como o Eszett (ß), por exemplo, e tem formas de grafia que são muito complicadas. Portanto, fizeram uma coisa que foi uma revisão ortográfica. A aceitação dessa forma ortográfica foi duríssima, foi complicadíssima [confusão e amálgama, para baralhar!…não se compara o que não é comparável]. Houve…
E portanto eu vou tentar apressar para dizer que a Alemanha teve avanços e recuos, houve jornais que disseram que nunca aplicariam e passaram a aplicar, houve jornais que começaram a aplicar, deixaram de aplicar e voltaram a aplicar, houve posições do mesmo teor. Mas hoje toda a gente aplica. O acordo é de, a revisão ortográfica alemã é de final dos anos 90, foi uma coisa muito discutida no Parlamento, muito feita, muito elaborada, aquele trabalho, e hoje toda a gente faz isso. [“Isso” o quê? Que “toda a gente”? (*)] Isto não significa que as pessoas não continuem a escrever, por exemplo, o ß [Eszett ou scharfes S (*)], que é uma uma letra que quer dizer um “s” mas quer dizer um “s” longo e portanto a gente diz “der Fluß [‘sic’]” [sugestão de transcrição de Francisco Miguel Valada, que muito agradecemos – alterado em 24.06.2013] para dizer que é luss, mas se for dois rios já diz “die Flüsse” [correcção da transcrição por Francisco Miguel Valada, que muito agradecemos – alterado em 24.06.2013] e passa, já substitui o ß por dois “s”, para dizer que é rápido. Isto, as pessoas continuam a escrever, eu continuo a escrever à moda antiga, continuo a escrever à moda antiga como muita gente continua a escrever à moda antiga, não é? Não acontece nada. Mas todos aqueles que fazem oficialmente a escrita do alemão escrevem como agora se escreve. Mas se alguém decidir editar livros com a grafia do século XIX, ninguém vai preso. Não há nenhuma sanção, quer dizer, se uma editora quiser editar as coisas como se escrevia no século XIX ou no tempo do Eça, escreve. Quer dizer, a gente poderá achar estranho, lê aquilo, se calhar não compra o livro, mas pode fazer, quer dizer, isto é uma norma, digamos, é uma norma que está em vigor mas não é uma norma que portanto tenha uma sanção [excepto se for considerado como desobediência qualificada, em sede de procedimento disciplinar… (*)] e portanto que proíba os editores de fazer isso, não, não há um censor por trás dos editores a dizer “o livro não…”. Agora, os livros oficiais certamente que o Governo, o Ministério da Educação, o Ministério dos Negócios Estrangeiros quando aprova livros para serem instrumento de ensino, não vai aprovar um livro que tenha uma grafia que ele já, o Estado português entendeu que não se devia utilizar, mas eu diria que a pacificação disto será feita quando aparecer um aluno na aula que escreve fotografia com “ph”, como aparecerá agora, e o professor lhe diz, “olhe, já se escreveu assim, mas agora já não se escreve, agora é com ‘f’, é esta letra, não é aquela”. Ele diz, “ah, eu sei, mas gosto mais”, ele diz “’tá bem, pode gostar mais, mas nas coisas oficiais, nos testes, nos exames, nas coisas que escreva, não faça assim porque eu marco-lhe erro”. [Ah, afinal há mesmo sanções. (*)] Quando estiver pacificado este entendimento, o acordo ortográfico estará completamente em vigor. Isto é aquilo que eu acho que a Academia Espanhola consegue através de uma coisa que nós não percebemos ainda.
A Academia Espanhola fez o seguinte: quando as, os ex-territórios espanhóis, da América do Sul, se foram tornando independentes, com o Bolívar, em 1808, 10, 12, por aí fora, até mil novecentos e tal, fez uma coisa que foi, passado vinte anos, dez anos, convidava o Presidente da República, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, o Primeiro-Ministro; destes, aqueles que melhor falassem espanhol, num século de retórica, de discursos, de saber escrever e ler e dizer muito bem, e convidava-os para serem académicos correspondentes da Academia Espanhola de Língua. E eles aceitavam. Aceitavam, era um grande orgulho, o espanhol, quer dizer, pelo amor de Deus, a Academia Espanhola da Língua convidava-os para ser, eles aceitavam. E fazia, formava assim uma espécie de pequeno grupo de correspondentes em cada um dos países da América Latina. Na Colômbia, na Venezuela, na Argentina, no Chile, e assim fez. Passado mais vinte anos, ou dez, consoante o andar das coisas, dizia: “Por que é que vocês não fazem uma Academia de Língua Espanhola chilena? E uma colombiana? E por que é que não fazem uma aqui também da Venezuela? E uma da…” E foi fazendo uma de todas, umas com mais dificuldade, outras com menos, umas rezingavam mais, outras menos, mas foi fazendo todas. E hoje tem 22 Academias de Língua Espanhola, em todos esses países, mais os Estados Unidos e as Filipinas, onde não é a língua oficial que se fala. E tem uma associação, uma federação de todas as academias de língua espanhola e são, em conjunto, eles fazem as regras ortográficas, os dicionários, os Thesaurus, as regras gramaticais, as… fazem tudo. Fazem tudo e têm um orçamento anual de 1400 milhões de euros [a “Real Academia Española” tem realmente, como lhe compete, uma política de língua].
As Academias de Língua Espanhola têm um orçamento anual de 1400 milhões de euros. Vão buscar dinheiro a todas as sociedades e mais alguma que existam e que falem a língua espanhola, da Telefonica até às da América do Sul, às do México, às de todo o lado, arranjam muito dinheiro por essa via, fazem publicações, dicionários da Academia de 10 em 10 anos um dicionário novo, as gramáticas, os Thesaurus, tudo, respondem a todas as perguntas sobre língua em todo o lado e é tudo em linha, não é Madrid, é todos os académicos de todas as coisas, e por isso decidem: palavra nova, inventava um escritor argentino, em vez de dizer “indicação” ou “etiqueta”, diz “indiqueta”. Isto é erro ou é palavra nova? Eles decidem. E decidem que é erro ou que é palavra nova. E a gente vai a Moçambique e tem um grande cartaz da Vodafone é “Eu tou ligado”. O “estou” o “es”, já desapareceu, é “tou ligado”, “eu tou, tu tás, ele tá”. Já o verbo “tar”. Isto é erro, ou isto é, isto é certo? Isto é a palavra nova, um verbo novo que se fez? Moçambique vai decidir. Se não estiver com Academias de Língua em rede, se não formarmos Academias de língua nesses países, se não ajudarmos a formar essas Academias de língua, se não seduzirmos as pessoas que falam bem português para essas coisas, nunca faremos isso. Por isso é que a brasileira foi feita pelo Brasil, pelo… pela França e não por nós. Com todas as divergências que a partir daí, até os hábitos, os costumes são os franceses, eles vestem-se como académicos franceses. Parece que estamos no tempo do Napoleão.
Portanto isto é um trabalho absolutamente essencial, na minha opinião, para que não seja necessário o acordo ortográfico [O AO90 não é política de língua, não vem resolver nada, só vem destruir o português “euro-afro-asiático” e todo o trabalho sério feito anteriormente].
Se nós tivermos uma maneira de fazer as regras ortográficas, e todas elas sem decretos-leis, não é preciso. Os espanhóis não precisam, porquê? Porque todas as Academias se reúnem, porque todas as Academias fazem isto. É ir ver, peço-vos, vão visitar a Academia Espanhola de Língua. E vão ficar totalmente boquiabertos, até salas têm reservadas para quando um académico de língua espanhola vem da América do Sul ter sítio para trabalhar lá. Tem seis gabinetes para isso, com computador, com tudo. Tem uma senhora, secretária, que a única coisa que faz é tratar das viagens e do alojamento das pessoas que vêm da América Latina para manter a rede. Claro, isto dispensa qualquer acordo ortográfico. E isto é feito consensualmente por eles.
O que é que acontece? É que este acordo ortográfico foi feito por um Governo, um Parlamento, por um Presidente da República, por umas pessoas escolhidas por alguém do Governo, que os outros estão em desacordo. Se estiverem todos envolvidos, eles chegam a um acordo entre eles muito antes disso. Os de cá, mais os de Angola, mais os de Moçambique, mais os de não sei quê, e faz-se isto facilmente. Portanto, eu entendo que não há nenhum problema com o acordo ortográfico, o acordo ortográfico é uma obra viva, há-de mudar-se, há-de alterar-se, há-de ser renegociado, há-de ser não sei quê, tudo isto há-de acontecer, naturalmente e tem de ser assim, não pode ser doutra maneira, [contradições e defesa da obsolescência ortográfica programada!] quando aparecerem muitas coisas, que são feitas pelo A, pelo B e pelo C e que são diferentes, elas vão ou não integrar-se na língua consoante as coisas forem evoluindo. Aquilo que penso é que revogar, sair… Disparate. Não é possível. Não, não… não acho que seja possível o Estado português não perder a face completamente, dizer uma vez, duas vezes, três vezes, todos os órgãos de soberania e depois dizer “Ah, tínhamos pensado mal. Afinal, vamos pensar melhor, vamos fazer de outra maneira.” [Assim, para “não perder a face”, o Estado português deve persistir no erro: é a fuga em frente, rumo ao abismo…]
Todas as cores políticas, todos os partidos, toda a gente esteve envolvida nisto, não houve, que eu saiba, nenhum partido que tenha votado contra, sistematicamente contra qualquer coisa do acordo ortográfico. O PCP absteve-se uma vez [diz o deputado Miguel Tiago: Absteve-se sempre.] Absteve-se uma vez, mas nunca votou contra, [em suma: só o PCP se interrogou, teve dúvidas, optando responsavelmente pela prudência, sensível à dimensão patrimonial e identitária da língua dos portugueses; e agora, perante o caos instalado, foi também o PCP que propôs este Grupo de Trabalho] nunca disse […] tudo contra, não, vamos ver, vamos deixar andar, vamos ver, e portanto a abstenção é obviamente, digamos, um voto a favor com reservas, dizer “Não sabemos bem, mas talvez, deixa passar”. E portanto toda a gente participou, o PSD, o CDS, o PS, toda a gente, não, não há, não há dúvida quanto a isso.
E portanto não penso que seja possível sem um grande, sem uma grande vergonha, para todos nós, pensar sequer em voltar atrás.[ Nisto consiste a dignidade e a responsabilidade dos políticos que andamos a eleger?!… Não têm “vergonha”?!] Agora, fazer novas comissões, começar a falar com eles, com certeza. Mas eu diria primeiro criar uma comunidade académica, ou uma comunidade linguística, ou uma comunidade de língua em todos os países, por amor de Deus. De língua. Nós ainda não percebemos o milagre que é Angola e Moçambique falarem português. Porque aquilo não é o Brasil. [Pois não! Angola e Moçambique altivamente preservam a “nossa comum ortografia”, no esforço de alfabetização que estão a levar a cabo, enquanto Portugal optou por “desalfabetizar”os portugueses, embarcando na “deriva ortográfica”…Quem é capaz de travar este AO90 estúpido e desastroso, para construir uma nova política de língua? De “coragem política”, já ouviram falar?]
Quando nos viemos embora, os retornados todos, os portugueses todos, os que lá estavam, eu nasci em Moçambique, quando toda a gente se veio embora, em 74, 75, as pessoas que falavam português eram uma percentagem, em ambos os casos, inferior a 10%. Inferior a 10%. E ler e escrever, ainda menos. Os números que me disseram, quer dum quer doutro, era da ordem dos 2%. O Samora Machel, a seguir à independência, percorreu durante meses Moçambique, falou sempre em português, sempre com intérprete, que ninguém percebia. Sempre intérpretes locais. E na terra dele falou em português e corrigiu o intérprete frequentemente “Não é nada assim, tás a dizer mal”, porque ele falava a língua ele era de lá, claro. Mas falou sempre em português, nunca falou noutra língua, para criar unidade nacional. Angola fala português graças à guerra civil. Toda a gente fugiu para Luanda e como toda a gente fugiu para Luanda, toda a gente teve que se entender, muitos vindos de sítios diferentes. Não sabem ler nem escrever, mas só falam português. A língua é português [Nestes países, com várias etnias e línguas, o português (que nós para lá levámos) desempenha um papel unificador crucial].
Hão-de ir todos agora, para as províncias, para regular as províncias, a administração pública, formada sobretudo a partir do MPLA mas a partir dos órgãos do poder local e nacional, só vão falar português. Toda a gente fala português em Angola hoje. Não é toda a gente, mas maioria da população fala português. Isto é extraordinário. Quando nós nos vimos embora e ficam lá umas pessoas que não falam português, olha, guerra civil, toda a gente fala português. Extraordinário. E não percebemos isto, e não aproveitamos isto? [Pois, pelos vistos, os políticos que negociaram e nos impuseram o AO90 não perceberam! Não viram que a “unificação” com o Brasil era desnecessária e impossível, que o futuro do português estava em Portugal, na nossa “diáspora” e nos outros seis países e comunidades (Goa, Macau…) espalhados pelo planeta…]. Por exemplo, política europeia, não compreendo que não haja defesa na política europeia de apoio….
(continua…)
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