Já nestas crónicas se escreveu sobre isso, há três anos, mas como a coisa se mantém não é mau voltar a lembrar. Na edição de filmes em Blu-ray ainda se menciona “Brasileiro” como língua para legendas. Mas só na capa dos filmes, porque lá dentro, nos discos, vem claramente escrito Portuguese e Portuguese (Brazil) ou Brazilian Portuguese, tal como aliás sucede com o Espanhol, quando é subdividido em Castilian Spanish e Latin Spanish. O que leva então os portugueses a imprimirem capas com “Brasileiro” escrito? Enquanto não se descobre a razão de tal teimosia, comparem-se, por curiosidade, algumas legendas de um filme que muitos terão visto no cinema e agora já podem ver ou rever em casa: Lincoln, de Steven Spielberg.
Acertando as legendas para “Brasileiro”, Mary Todd Lincoln diz (aos 10m12s) ao marido: “Lembra que Robert [filho de ambos] vai estar aqui para a recepção? Sabia que ia esquecer.” Em Português, a tradução é assim: “Lembras-te que o Robert vem a casa para a receção? Eu sabia que ias esquecer-te.” Muda-se o tipo de tratamento, de “você” para “tu”, respeitando o uso de cada país, e a palavra “recepção”, que em Portugal se abastardou.
Pouco depois (13m10s), Lincoln apresenta-se em público para dizer umas palavras e hastear a bandeira. Em “Brasileiro” diz assim: “A mim cabe hastear a bandeira. Se não houver falha no maquinismo eu o farei.” E em Português: “O papel que me cabe é hastear a bandeira. O que, caso não haja falha de equipamento, farei.” Mesmo escritas, “ouvimos” as diferenças. A cena seguinte passa-se entre William Seward e Lincoln (14m29s). O primeiro queixa-se: “São os mesmos caipiras ignorantes que rejeitaram a emenda há 10 meses.” Lincoln diz: “Gosto de nossas chances agora.” Isto no tal “Brasileiro”. Em Português a frase é mais extensa: “É a mesma cambada de labregos e carreiristas sem talento que rejeitou a emenda há 10 meses. Perderemos.” E Lincoln responde: “Gosto das nossas probabilidades.” A mesma língua, sem dúvida, mas duas formas diferentes de usá-la em termos coloquiais.
Querem “ouvir” diferenças maiores? Estão neste diálogo entre Latham e Bilbo, que Lincoln contrata para angariarem apoiantes para a sua 13.ª Emenda à Constituição (37m27s). Ao verem o debate no congresso, interrogam-se: “Quem é aquele homem todo suado que morde o polegar?” “Não o conheço. Parece inquieto.” Isto em Português. Em “Brasileiro” o diálogo é traduzido assim: “Quem é o suado mordendo o dedão?” “Desconheço, parece irrequieto.” Um pouco mais adiante (38m14s), ainda com os mesmos protagonistas e o mesmo cenário, primeiro na versão em “Brasileiro”: “O interessante é que o sr. Yeman parece irritado.” “Ele devia estar aplaudindo.” “Parece que comeu ostra podre.” E agora em Português: “O mais interessante é o aspeto carregado e descontente do sr. Yeaman.” “Ele devia estar a aplaudir.” “Parece que comeu uma ostra estragada.” Viram o “aspeto”? Se na versão brasileira fosse incluída tal palavra, escreveriam “aspecto”. No espeto, só os portugueses.
Por fim, só mais um exemplo, ainda com Latham e Bilbo (44m23s), desta vez a explicarem a Lincoln quem haviam conquistado para a causa anti-esclavagista. Ao falarem de Giles Stuart (Stuart está a levantar dinheiro do banco, dão-lhe um encontrão, as notas espalham-se pelo chão e, enquanto eles o ajudam a apanhá-las, mostram-lhe a proposta de 13.ª Emenda), comentam (em Português): “Que trapalhão.” E em “Brasileiro”: “Bem estabanado.”
Bem estabanado??? Será Tupi? Guarani? Sertanejo? Gaúcho? Nada disso. A palavra virá do latim tabanu, espécie de moscardo, que deu origem a tabão ou tavão. Ora, cruzando informações de vários dicionários, a picada de tal moscardo fazia com que a vítima ficasse tresloucada, descuidada, desastrada. O estabanado (ou estavanado) vem daí.
Pois bem: que tabão terá mordido a quem acha que pode “unificar” diferentes modos de falar e escrever uma mesma língua (o Português) num acordo ortográfico que apenas finge que é tudo igual, já que continuará a haver traduções diferenciadas (em filmes, livros, peças de teatro) para Portugal e para o Brasil? Que desvario moverá tais criaturas, contra todas as evidências, argumentos e protestos? Quem caça o moscardo e o neutraliza, para evitar os malefícios de tão estabanado acordo?
[Transcrição integral de texto, da autoria de Nuno Pacheco, publicado na “Revista 2”, suplemento do jornal “PÚBLICO” de 14.07.13. Imagens de Filckriver utilizador “e-monk” e de AHC & Vasa, Lda. Destaques e “links” adicionados por nós.]