O ACORDO ORTOGRÁFICO foi uma aventura – em parte bem-intencionada — que se deixou levar demasiado longe. Na discussão têm fervilhado as proclamações e os equívocos. Ninguém está livre deles. Não tenho a pretensão de exprimir verdades absolutas. Mas agora que o assunto vai à Assembleia da República, talvez consiga ser útil com algumas modestas observações à margem, fora de argumentários, gesticulações e vozearias. De notar que, seja quais forem as posições tomadas, há, de um e do outro lado, PESSOAS que merecem respeito e cujo apreço pela Língua Portuguesa não pode ser posto em causa.
1 –. Nem tudo o que muda é progresso. Uma amputação é uma mudança. O apodrecimento também é um processo de transformação. Mas mudar para pior não é progresso, é regresso. Parece-me equivocado colocar as «simplificações» e as «uniformizações» do lado das aspirações sociais. Diminuir o alcance de um texto (cerceando-lhe a memória histórica, por exemplo) é empobrecer quem o lê. E isso não é «moderno», muito ao contrário, é uma limitação à liberdade.
2 – O chocalhar de quinas, sabres e castelos, com gritos de «sus! A mim!», como se a Pátria imemorial estivesse ameaçada e as cinzas dos nossos maiores estremecessem nos seus túmulos, parece-me que vem em má ocasião. Não é isso que está em causa. Ninguém pretende desacatar D. Afonso Henriques.
3 – Alguns escritores e outros práticos da Língua pensam (como Saramago disse a propósito de uma tentativa de acordo ainda pior) que «isso é coisa para revisores». Eu tenho uma enorme estima por revisores, com quem venho aprendendo muito. Têm-me poupado alguns deslizes e até dispensado – o que muito agradeço – de me exasperar com minudências e ambiguidades não raro antipáticas. Ao contrário do que pensa a sabedoria popular (com a sua atávica propensão para o erróneo), os escritores não têm que papaguear a gramática de cor. Mas a gramática não serve apenas «para dar o pitoresco» como ironizava Mark Twain. Valerá a pena, pelo menos, dar notícia de um desconforto.
4 – O que não vale a pena é bramir, vociferar, pôr-se aos encontrões e transformar a questão em matéria de claque clubística, na disputa pelo alarido mais ruidoso.
5 – A língua é uma realidade entranhada, que evolui e se transforma em interacção com as transformações sociais e históricas, e de acordo com as suas próprias leis (às vezes misteriosas). Não me parece adequado usá-la para experimentações. «Pesquisas fazem-se em casa, já dizia a minha avozinha que era escritora» escreveu algures Alexandre O’Neill. Impõe-se a máxima cautela quando se toca em aspectos relacionados com um uso quase milenar e com um corpus literário apreciável. A ortografia não é tão neutra como se pensa. Os matizes, as deslocações de sentidos são de uma extrema sensibilidade.
6 – Tremendo e custoso equívoco tem sido considerar-se que as questões da língua são com os linguistas. A derivação «língua>linguista» leva muitas pessoas, com bom ânimo, a fiar-se nas aparências e a pensar que os linguistas estão na primeira linha da discussão sobre a Língua. O engano ainda cresce com a invocação de alguns nomes prestigiadíssimos (e com razão) naquela especialidade. Não é o caso, como parece evidente, do Doutor Casteleiro. Trata-se, no meu entender, de um erro completo. Talvez eu consiga explicar isto melhor com exemplos: Um osteopata que saiba tudo sobre o esqueleto humano está preparado para dar consultas de psiquiatria? Um engenheiro naval, hábil em desenho, está apto a comandar um navio? Enfim, confiariam um batalhão a um historiador militar? Note-se que eu não tenho nenhum rancor a linguistas. Muito ao contrário. Por alguns – que até poderia nomear – tenho uma afectuosa admiração. Mas chega a ser injusta para eles a responsabilidade que lhes tem sido atribuída nesta questão ortográfica.
7 – Infelizmente, não é pela ortografia que o Português de Portugal e do Brasil divergem. Esta talvez seja, até, a disparidade mais insignificante. Não vale a pena estar a trazer para aqui exemplos que são do domínio público e só não os vê quem não quer É um problema sério para que eu não tenho soluções e que merecia ser ponderado, calmamente, cautelosamente, por quem tivesse os necessários saber, experiência e perícia. Um ou outro linguista, creio, seria até bem vindo a esse trabalho.
8 – Tem aparecido com alguma frequência o fantasma do «conformismo». Que as pessoas estariam acostumadas a escrever de certa forma e existiria um lastro de inércia, inimigo das melhorias e transformações, sempre a puxar à retaguarda… Esse argumento é utilizado precisamente pelas pessoas que já se acomodaram à prática do acordo ortográfico (nas escolas, nos jornais, etc.) e têm medo de que as façam estudar de novo. Não é nenhum bicho-de-sete-cabeças. Bastam, de facto, umas noções elementares daquela etimologia que fizeram desaparecer das escolas, não se sabe a que propósito. Porventura certo desprezo subliminar pelo ensino de massas, pois, em algumas almas, tratando-se de educação para pobres, «para quem é, bacalhau basta».
Acho que se vai a tempo de reconsiderar. Desmobilizar a aventura. Acredito que os custos da manutenção do acordo viriam a ser mais graves que os da suspensão. Não há pressa. E não gostaria de ver os defensores do acordo na posição de vencidos que grande parte deles, pela sua boa-fé, não merece.
E aqui ficam estes pontos que espero contribuam um pouco para a discussão serena do Acordo Ortográfico. O meu propósito, não sei se conseguido, é evitar as toadas agressivas que por aí têm chegado quase ao destempero.
Vamos com calma.
MdC
[Transcrição integral de texto da autoria do escritor Mário de Carvalho, publicado em 16.02.14 na sua página na rede social Facebook. Imagem importada do “site” do autor.]