“A resposta parece ser negativa”? Não, não parece. A resposta é mesmo negativa.
“A realidade não parece comprovar”? Não, não parece comprovar. Comprova mesmo.
“Parecendo-lhe «evidente»”? Não, não apenas lhe parece como é mesmo evidente; sem aspas.
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publicoLUÍS MIGUEL QUEIRÓS – 

Agora que boa parte das editoras adoptaram o acordo, o livro português ganhou mercado no Brasil? A resposta parece ser negativa.

Ao estabelecer uma ortografia unificada, o acordo ortográfico (AO) iria facilitar a circulação do livro português no Brasil. Este foi, entre muito outros, um dos argumentos brandidos em favor da sua aplicação. Agora que, tanto em Portugal como no Brasil, boa parte das editoras adoptaram o acordo, essa promessa começa já a concretizar-se? A resposta parece ser negativa.

Entre os três principais grupos editoriais portugueses, dois adoptaram o AO, abrindo apenas excepção para autores que rejeitem expressamente a nova ortografia. É essa a política da Porto Editora e da LeYa. No grupo Babel, cujo presidente, Paulo Teixeira Pinto, se opõe publicamente ao AO, segue-se a lógica inversa, explica Sara Menezes, do departamento de comunicação: “Utilizamos sempre a ortografia anterior ao acordo, a menos que o autor diga algo em contrário.” E, garante, “não é nada frequente” que isso aconteça. A excepção à regra geral é o sector da literatura infanto-juvenil, em cujas edições a Babel já vem utilizando o AO.

A LeYa é hoje o único dos três principais grupos editoriais portugueses com um ramo brasileiro. A LeYa-Brasil publica edições generalistas, mas está também presente no livro escolar, através da chancela Alumnus. Tendo adoptado o novo AO já em Abril de 2011, a editora usa a norma europeia nas edições portuguesas e a norma brasileira nos livros destinados ao mercado brasileiro. O director de comunicação do grupo, José Menezes, diz que o AO “não foi relevante” para os projectos da Leya no Brasil e adianta que “dificilmente um livro publicado em Portugal pela LeYa sai no Brasil exactamente igual ao que saiu cá, e vice-versa”.

A razão, diz Menezes, é que “há quase sempre a necessidade de se fazer um trabalho de adaptação do texto para os leitores de Portugal ou do Brasil, para alteração, por exemplo, dos diferentes termos usados de um e do outro lado do Atlântico”. Simetricamente, este responsável da LeYa também não crê que o AO tenha vindo facilitar a divulgação de autores brasileiros em Portugal: “O interesse dos leitores depende da promoção que as editoras fazem, e não de outros factores.”

O PÚBLICO não conseguiu ouvir Vasco Teixeira, da Porto Editora, que inicialmente se opôs ao AO, mas que veio adoptá-lo no seu grupo editorial já em Março de 2011, argumentando que a polémica deixara de fazer sentido a partir do momento em que o Governo calendarizara a aplicação do acordo no sistema de ensino e na administração pública. Mas um dos responsáveis editoriais do grupo, Manuel Alberto Valente, lembra que a Porto Editora tem “uma posição especial enquanto editora escolar” e “não pode fazer manuais escolares contra o que o Governo determina”. Do mesmo modo, teria de regressar à grafia anterior, “se o acordo amanhã fosse revogado”.

Sem experiência de “autores pretendidos pelo Brasil” que lhe permitam avaliar o impacto do AO nesse domínio, observa, no entanto, que “o acordo ortográfico não altera nada em relação aos problemas de incomunicabilidade”, porque eles estão noutro lado e não no facto de escrevermos ‘acto’ ou ‘ato’”.

Se não apostou até hoje no mercado brasileiro, a Porto Editora tem, no entanto, editoras em Angola e Moçambique, as Plural, que editam sobretudo livros escolares, e cujos manuais não utilizam o AO, uma vez que nenhum destes países o ratificou.

“A gente entende”
Num manifesto intitulado “A língua como motor económico”, divulgado em 2012 no âmbito dos Colóquios da Lusofonia, iniciativa da qual Malaca Casteleiro, principal obreiro do AO pelo lado português, é assumido patrono, defende-se que “a unificação da ortografia permite a divulgação do mesmo texto em vários países”, o que “não só facilita o acesso recíproco a todas as literaturas lusófonas”, como “permite a publicação de edições únicas que poderão entrar em vários mercados livreiros”.

Um cenário que a realidade não parece comprovar. E se o argumento, a ser verdadeiro, poderia seduzir editores portugueses, já o mercado editorial português não tem dimensão, com acordo ou sem acordo, para se tornar apetecível aos editores brasileiros. “A gente não pensa muito no mercado português”, diz Ricardo Lelis, da editora Cosac Naify.

Assumindo não ser favorável ao AO — “Achei essa mudança ruim>” —, Lelis não vê que este tenha feito qualquer diferença na relação com Portugal. “Nos autores portugueses que entram no Brasil, a grafia não é alterada, porque a gente entende e não tem muito por que mudar”, diz.  Foi o que aconteceu, por exemplo, na edição da obra de Fernando Pessoa pela Companhia das Letras, que assumiu a ortografia usada nas edições portuguesas da Assírio & Alvim, que até nem corresponde à ortografia usada pelo próprio Pessoa.

Mas Rui Couceiro, do grupo Porto Editora, chama a atenção para o facto de ser preciso distinguir entre os meios literários do Brasil, que “são leitores dos autores clássicos e contemporâneos portugueses”, e a maioria dos brasileiros, que “estão muito menos expostos à oralidade portuguesa” do que os portugueses à brasileira, por via das telenovelas.

Isso mesmo observa Pedro Bénard da Costa, que trabalha em legendagem para a Cinemateca. Se “não faz sentido” usar em Portugal legendas em português do Brasil, observa, o inverso “seria muito pior, seria o caos”. Parecendo-lhe “evidente” que o AO não evita que se continue a fazer legendas diferentes para os mercados português e brasileiro, Pedro Bénard da Costa argumenta: “A construção gramatical é completamente diferente, e há imensas palavras que não têm o mesmo sentido cá e lá.

[Transcrição integral de artigo do jornal “Público” de 28.02.14. “Links” e destaques adicionados por nós. Os comentários prévios são de JPG.]

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