[audio: http://cedilha.net/ilcao/wp-content/uploads/2014/03/TC_rtp_podcast_lowres.mp3]

[Transcrição manual, a partir de registo áudio, de parte (entre os minutos 25:52 a 36:18) do programa Páginas de Português, RTP Play, transmitido no dia 9 de Março de 2014, intervenção de Teresa Cadete. “Links” adicionados por nós.]

 RTPLocutor: A polémica prossegue, perfilando-se os que o apoiam e os que o criticam. Entre as personalidades que defendem o abandono do acordo ortográfico está a Professora Teresa Rodrigues Cadete.

fotoTSProf.ª Teresa Cadete: Este assunto é, para já, o crivo da capacidade de pensar, de analisar todos os prós e os contras, friamente, sem deixar de fora nenhum aspecto importante e tentar compreender os argumentos do outro lado e não levar as pessoas a barricar-se numa posição de quem acha que tem toda a razão. Porque ninguém tem toda a razão. A única coisa que nós estamos a verificar é – e quando digo “nós”, digo a população que lê e que ouve falar – é que o acordo veio empobrecer a nossa língua, veio abrir uma caixa de Pandora à arbitrariedade, porque existe aqui um grande paradoxo. Por um lado, o texto do acordo prevê facultatividades. Facultatividades essas que são decepadas através do programa Lince, que está comprovadamente muito mal feito. Dou-lhe um exemplo que nós vemos: eu aprendi sempre a dizer sector, a pronunciar sector, a pronunciar espectro; por que é que o programa Lince corta aquilo que, segundo o texto do AO de 1990, se pode escrever porque se pronuncia?

L: Mas, se o acordo já está para ser implementado, estamos neste período de transição, a partir de 2016 as regras do novo acordo ortográfico vão estar completamente em vigor e a antiga ortografia, a ortografia de 1945, estará posta de lado, o que é que ainda se pode fazer para reverter, ou para melhorar a situação, ou para fazer com que a situação deixe de ser tão fracturante?

TC: A situação continuará a ser fracturante, não podemos erradicar essa possibilidade. A situação continuará a ser dramática. Eu só tenho duas certezas. Que o caos está instalado para ficar, e realmente aquele exemplo que eu dei num artigo, do sinal de trânsito em que, a pretexto de cortar um “p”, também se corta o “c”, portanto fica “Exeto universidade“, quando deveria ser, segundo o acordo de 1990, “exceto” sem “p” e de acordo com a ortografia de 1945, “excepto”, como se pronuncia em francês, em inglês e em espanhol, o caos está para ficar, é uma das certezas que já temos todos, simpatizemos ou não com o acordo, e, por outro lado, a resistência ao acordo está para ficar e não é só uma questão de uma geração, de mais idade, que se recusa a escrever de uma maneira diferente do que aprendeu; são também muitas pessoas que estudam e que estão conscientes da sua História, da sua Geografia, das suas raízes greco-latinas, e que querem amar e apreciar toda a riqueza da variante brasileira na sua sensualidade, na sua leveza, na sua diversidade. E deixe-me dizer-lhe que não conheço ninguém, entre todas essas pessoas, ninguém que seja crítico ao acordo, que não ame profundamente a riqueza da literatura brasileira e que não tenha absolutamente nada contra um uso mais amplo da variante brasileira, por exemplo, em programas de computador, em linguagens de negócios, desde que seja assinalado como tal. Eu não tenho nada contra a manutenção do Português europeu como língua minoritária, acho que é uma língua muito digna, porque pode continuar a ser minoritária e deve continuar a ser assinalada como Português-padrão. O Português do Brasil pode ser o mais divulgado, mas nenhum brasileiro teve, até agora, que eu saiba, a veleidade de dizer que o Português do Brasil era o Português-padrão. Portanto, deixemos, digamos, o irmão pequeno e o irmão grande coexistirem no encanto mútuo da descoberta da diferença.

L: Na sua perspectiva: um dos argumentos das pessoas pró-acordo é que este acordo permitiria que a Língua Portuguesa tivesse uma projecção internacional mais coesa e uma projecção internacional mais forte, e que não iria pôr de parte Portugal, os portugueses, o próprio país. Como é que vê este argumento?

TC: Para já não é argumento, é uma falácia, não está comprovado e eu dou-lhe o exemplo da reacção dos meus colegas do PEN Internacional em dois congressos em que foram aprovadas resoluções contra o acordo ortográfico. Todos ficaram espantados e chocados porque acharam que, nas palavras do Presidente internacional, que é um colega canadiano, John Ralston Saul, não há nenhuma razão para trucidar uma língua desta maneira por razões burocráticas, administrativas e económicas. Porque uma língua é um organismo vivo, um instrumento de cultura e, sendo realmente o Português do Brasil eventualmente mais fácil de manejar numa perspectiva que terá conduzido à elaboração desse grafolecto do acordês, por que é que não se usa o Português do Brasil nessas situações e por que é que não se deixa que o Português-padrão permaneça como língua de cultura, como língua falada e escrita pelos 10 milhões de compatriotas aqui neste rectangulozinho no extremo Ocidente da Europa?

L: Não nos iria isolar?

TC: Não é por aí que estamos isolados. Há cerca de 30 anos, uma colega minha brasileira, uma professora de Literatura, quando me pediu um livro, disse: “Realmente, é muito difícil obter aqui livros de literatura portuguesa, porque nós perguntamo-nos às vezes se os livros não chegam por caravelas”. As regras de mercado não passam por aí. Nós sabemos que o Português do Brasil irá continuar a ser diferente e, como nós sabemos e ninguém que simpatiza com o acordo ortográfico poderá negar isso, o Português do Brasil sofreu muito menos cortes do que o Português de Portugal nesta pseudo-unificação, que afinal não é unificação nenhuma, como nós sabemos.

L: Há pouco disse que a Língua é viva, e que está em mutação, e que neste caso o acordo veio cortar, veio decepar um pouco a Língua Portuguesa. Mas também, do outro lado, as pessoas também dão o mesmo argumento, de que o Português é uma Língua viva e, como tal, estas alterações são viáveis, porque se não fosse assim estaríamos a falar Latim.

TC: Há quantos séculos deixámos de falar Latim. E digo-lhe uma coisa, o Latim nunca se falou enquanto Latim, ou seja, o Latim culto, aquele Latim que eu ainda ouvi na missa, quando era miúda, o Latim culto é uma ficção. Não quero entrar no foro dos meus colegas classicistas, que percebem estas coisas melhor do que eu, mas o Latim que se falava era um Latim vivo, ou seja, era um Latim cheio de regionalismos, e portanto toda a evolução de uma Língua se faz. Eu lembro-me que o próprio autor do acordo, enfim, que é uma pessoa hoje extremamente criticada, o professor Malaca Casteleiro, um colega com quem eu me dou lindamente – ex-colega, porque já se jubilou –, fez um dicionário que incluía palavras como “bué”, ainda antes da implementação, ou seja, vá lá, da imposição por decreto do acordo ortográfico, e toda a gente achou muita piada a isso e não temos absolutamente nada contra. Aquilo que eu considero problemático é a arbitrariedade dos cortes, o desmembramento de famílias [lexicais], a não necessidade e até a falta de economia da elaboração de um grafolecto que acho que vem isolar ainda mais o Português. Mas, para isso, tem que haver estudos de campo e aí, pronto, só posso formular isto como hipótese, não posso dar certezas absolutas. Como lhe disse, só tenho estas duas certezas: que o caos está para ficar e grande parte do caos é resultante da caixa de Pandora aberta pelas arbitrariedades do acordês (primeira certeza) e, segunda certeza, que a resistência com argumentos válidos está para durar.

L: Professora Teresa Rodrigues Cadete e as razões que, na sua opinião, sustentam o abandono, pela parte do nosso país, do acordo ortográfico.

 

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