DNlogoQuarta-feira, 26 de Março

Por mim, está encontrado o novo herói da querida língua portuguesa. E não, não se trata de um romancista, poeta ou académico. Trata-se, acreditem se puderem, de um magistrado, nem mais nem menos do que o juiz Rui Teixeira, célebre pelo processo da Casa Pia, que instruiu e do qual foi enxotado.

Agora arrisca-se a ser corrido da profissão em si, e tudo porque, há quase um ano, recusou um relatório escrito na mistela resultante do Acordo Ortográfico e ameaçou multar os serviços do Ministério da Justiça que não se dispusessem a reescrever o documento em português de gente. À época, o Dr. Teixeira sentenciou que, no tribunal dele, “os factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar, os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso e a Língua Portuguesa permanece inalterada até ordem do contrário”.

É certo que, conforme lembra Henrique Monteiro num dos blogues do Expresso, a atitude do juiz é arrogante e os seus argumentos um nadinha ignorantes. Por um lado, duvido que o homem possa sequer multar os funcionários em questão sob o referido pretexto. Por outro lado, escolheu péssimos exemplos: o “c” de “facto” não é mudo e mantém-se; as palavras esdrúxulas não ficam sem acento.

Ainda assim, julgo que Henrique Monteiro, ao contrário do Dr. Teixeira, não viu o essencial. E o essencial é que uma trapaça tão injustificada quanto o AO não obriga à lisura dos respectivos opositores. A partir do momento em que, nas nossas costas, um bando de iluminados decidiu reduzir o idioma do padre António Vieira a uma aberração indigna do padre Borga, o princípio do vale-tudo está legitimado. Não há crime em distorcer, exagerar, falsear o poder destrutivo do AO desde que a recompensa seja a perturbação do dito. Por atabalhoado que fosse, o gesto do Dr. Teixeira representou um exercício de resistência, e mal faríamos se passássemos a discutir o modo como resistimos em vez de nos concentrarmos naquilo a que se resiste. A língua já sofre demasiado pelas vias informais da oratória política, do jargão jurídico, do dialecto futebolístico, dos clichés jornalísticos e do puro analfabetismo das “redes sociais” para que a deixemos entregue à tortura oficial infligida pelo AO. O Dr. Teixeira errou, mas a resignação é que é o verdadeiro acto falhado. Ou “ato”, que nem chega a tanto.

[Transcrição de parte da crónica semanal “Dias Contados”, de Alberto Gonçalves, no “Diário de Notícias” de 30.03.14. “Links” e destaques adicionados por nós.]

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