«…o Acordo é importante para afirmar o óbvio: os destinos da língua portuguesa, daqui para a frente, serão ditados pelo Brasil, como potência econômica emergente e como ator destacado na geopolítica mundial.»
Entrevista exclusiva com o linguista MARCOS BAGNO concedida a Ricardo Paes via email
Marcos Bagno é professor do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília, doutor em filologia e língua portuguesa pela Universidade de São Paulo, tradutor, escritor com diversos prêmios e mais de 30 títulos publicados, entre literatura e obras técnico-didáticas. Atua mais especificamente na área de sociolingüística e literatura infanto-juvenil, bem como questões pedagógicas sobre o ensino de português no Brasil.
ÊXITO NA EDUCAÇÃO: Marcos, sei que já esclareceu em outras entrevistas a sua posição em relação ao Acordo Ortográfico que passa a vigorar oficialmente este ano, mas Portugal ainda resiste e até a ABL expressou o desejo de aperfeiçoá-lo. Você já reafirmou que trata-se de um Acordo e não de uma Reforma, que seria decerto algo mais profundo. Você poderia explicar a diferença e a abrangência política deste Acordo (ou Desacordo) Ortográfico?
Marcos Bagno – Pessoalmente, seria preferível que as duas ortografias oficiais, a portuguesa e a brasileira, tivessem sido reconhecidas como igualmente válidas para qualquer usuário, nativo ou estrangeiro, da língua. Que cada pessoa escrevesse como bem lhe parecesse, respeitando as opções já tradicionais em todos os países. Mas, uma vez decidida a adoção de uma ortografia unificada, aparando as diferenças entre as duas e mantendo uma ampla possibilidade de variantes, teria sido mais racional que todos os países implementassem a nova ortografia ao mesmo tempo. No entanto, por chauvinismo de setores culturais portugueses, a implantação do Acordo em Portugal tem sofrido constantes adiamentos. A razão é muito simples: para nós, brasileiros, o Acordo afetará apenas 0,5% do vocabulário, enquanto para os portugueses será 1%. Isso, para eles, significa um “abrasileiramento” da língua. Grande bobagem.
Do ponto de vista de políticas linguísticas, o Acordo é importante para afirmar o óbvio: os destinos da língua portuguesa, daqui para a frente, serão ditados pelo Brasil, como potência econômica emergente e como ator destacado na geopolítica mundial. Ao mesmo tempo, infelizmente, Portugal se acha no fundo do poço, tragado pela desumana crise que assola a Europa.
As velhas ideias de que “a língua pertence aos portugueses”, “os brasileiros falam mal o português” etc. podem ser definitivamente incineradas. Mas para isso é fundamental que o governo brasileiro assuma a língua como instrumento de uma estratégia política, econômica e cultural importantíssimo. A língua como mercadoria, como bem de exportação, responde por altos percentuais do PIB de diversos países como a Espanha, a França, os Estados Unidos e até mesmo Portugal. Precisamos criar e implantar uma política linguística explícita, divulgar o português brasileiro no exterior, criar centros de estudos brasileiros para o ensino da língua etc. Infelizmente isso não tem sido feito. Quando chegamos, por exemplo, na Universidade Nacional Autônoma do México, o lugar com o maior número de estudantes de português do mundo, os poucos professores brasileiros não recebem nenhum apoio do governo brasileiro, enquanto o Instituto Camões, mantido pelo governo português, ocupa um andar inteiro no departamento de línguas estrangeiras. Quanto à prorrogação da implantação definitiva do Acordo, é um absurdo completo. Todos os órgãos da imprensa e todas as editoras do Brasil já adotaram a nova ortografia assim que ela foi promulgada, em janeiro de 2010. Isso tem implicado um altíssimo custo para as editoras que, a cada nova reedição de suas obras, têm atualizado a ortografia dos livros. Também desde 2010, os livros comprados pelo MEC através do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) vêm, por exigência do governo, com a nova ortografia. Agora aparecem pessoas que não têm nenhum conhecimento de causa e inventam de prorrogar a implementação definitiva. É uma perfeita irresponsabilidade. Como se não bastasse, o professor Evanildo Bechara aplaude a ideia porque acha que ainda é preciso rever alguns pontos do Acordo.
Repito: é um absurdo.Êxito na Educação: que a falta de visão dos governos brasileiros com relação à língua como commodity, como um ativo importante e estratégico, pode nos fazer perder a chance de decidir no futuro os rumos do idioma, o que você prescreveria como primeira etapa a vencer? Estamos em visível desvantagem por termos criado nossa primeira universidade tão tardiamente. Como superar todo esse atraso?
Marcos Bagno – O português brasileiro (PB) é a terceira língua mais falada no Ocidente como língua materna, ficando atrás apenas do espanhol e do inglês. Somos quase 200 milhões de falantes. No entanto, justamente por causa da nossa formação histórica, a cultura linguística dos brasileiros sempre foi muito baixa e principalmente com uma visão negativa da nossa língua. Temos uma entranhada baixa auto-estima linguística: julgamos que nosso português é “feio” e “estropiado”, que só os portugueses falam bem etc. Isso tudo é consequência da história da nossa educação, uma história realmente deplorável. Ao final do período colonial, existiam mais de 20 universidades nos países de língua espanhola das Américas, várias delas fundadas já no século XVI. No Brasil, nosso primeiro curso superior, a Faculdade de Direito de São Paulo, só foi fundada em 1827, depois da independência. Durante mais de 300 anos era proibido imprimir qualquer coisa em terras brasileiras e nossa primeira imprensa só foi criada em 1808, com a vinda da família real. Tudo isso tem prejudicado enormemente a implantação de uma verdadeira educação linguística no Brasil, centrada no PB, em suas variedades urbanas de prestígio, que há muito tempo nada têm que ver com o padrão obsoleto prescrito pela tradição normativa. Enquanto continuarmos achando que começar frase com pronome oblíquo é um “pecado” contra “a língua de Camões”, vai ser muito difícil avançar rumo a uma verdadeira democratização das relações linguísticas na sociedade brasileira. Poderíamos esperar que a chegada ao poder de um partido mais vinculado às causas populares e, sobretudo, de um presidente falante nativo das variedades menos prestigiadas, fosse alterar essas relações, mas elas permanecem praticamente as mesmas. Enfim, é preciso implantar uma nova cultura linguística no Brasil, de baixo para cima, a partir da escola. Tem havido alguns avanços, poucos, mas ainda é preciso trilhar um longo caminho.
[Transcrição integral de entrevista publicada na revista “Êxito na Educação“ (do Brasil), n.º 1, de Março-Abril de 2013. Destaques nossos.]
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