As várias fases da ortografia da língua portuguesa
A língua portuguesa já existia, na sua forma oral e escrita, muito tempo antes de chegarmos ao Brasil, facto que parece andar esquecido:
“A individualidade da língua portuguesa começou a desenhar-se no domínio do léxico e pode remeter-se para uma data próxima do século VI. (…) Os dois primeiros textos escritos em português – a «Notícia de Torto» e o «Testamento» de D. Afonso II – datam de 1214-1216.” (M.H.M.M.)
Há que considerar três períodos na história da ortografia da língua portuguesa:
1. Período denominado sem grande precisão fonético, que corresponde à época do português arcaico.
2. Período etimológico, iniciado com o Renascimento e que se prolonga até princípios do século XX.
3. Período das reformas ortográficas, que se desenrola pelo séc. XX e vem até aos nossos dias, incluindo a assinatura do Acordo luso-brasileiro de 1945, pelo qual se tentou fixar definitivamente, uniformizando-a, a ortografia da língua nos dois lados do Atlântico.
A fase das reformas ortográficas
1907 – A Academia Brasileira de Letras (ABL) efectua uma reforma ortográfica, para simplificar a ortografia, no sentido de a aproximar da fonética; foi «complementada em 1912» (M.S.), “mas o sistema por ela proposto foi combatido inclusive dentro da própria Corporação” (P.V.C.).
1911 – É nomeada pelo governo português “uma Comissão de filólogos, entre os quais se destacava Gonçalves Viana”, Carolina Michaëlis, Cândido de Figueiredo, Leite de Vasconcelos e outros, “a fim de estabelecer as bases da denominada Nova Ortografia, que foi implantada oficialmente cinco anos mais tarde, em 1916, sofrendo ainda em 1927 ligeiras modificações” (P.V.C.).
1915 – A ABL resolve aplicar a reforma portuguesa.
1919 – A ABL revoga a resolução de 1915.
1930 – 1931 – o problema da reforma ortográfica coloca-se de novo no Brasil. É assinado um Acordo Ortográfico com Portugal: Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro (1931).
1940 – Um Vocabulário Ortográfico, organizado por Rebelo Gonçalves, “de acordo com as premissas estabelecidas no acordo de 1931” (M.S.), é publicado em Lisboa.
1943 – É publicado o Formulário Ortográfico da Língua Portuguesa, assim como o Pequeno Vocabulário Ortográfico, ambos da Academia Brasileira de Letras.
N.B.: é este formulário que tem regido a ortografia brasileira até agora.
Mas estes Vocabulários, português e brasileiro, divergem em vários aspectos.
No mesmo ano, na Convenção Ortográfica de Lisboa, decidiu-se fazer mais um acordo entre Portugal e Brasil.
1944 – Brasil: por decreto de 1 de Junho, as repartições do Estado foram obrigadas a observar o Acordo com Portugal. Mas a imprensa continuou a velha tradição ortográfica.
1945 – É assinado o Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro de 10 de Agosto de 1945, depois de um longo trabalho e de várias cedências, de ambas as partes.
“No Brasil foi aprovado este Convénio por decreto-lei de 5 de Dezembro de 1945 [Decreto-lei 8.286], mas não foi aceite pela imprensa nem pelos particulares, e a própria Constituição – publicada em 1946 – segue a ortografia de 1943 em vez da unificada. Por fim, e perante os múltiplos protestos que se levantavam contra ele, a Assembleia Legislativa revogou o decreto-lei que oficializava o Convénio de 1945 [Decreto-lei 2.623, de 21.10.1955], voltando-se outra vez à ortografia de 1943.” (P.V.C.)
1947 – É publicado pela Academia das Ciências de Lisboa, em colaboração com a Academia Brasileira de Letras, o Vocabulário Ortográfico Resumido, em consonância com o Acordo de 1945.
Uma última alteração – supressão dos acentos nos derivados com os sufixos -mente e iniciados por -z:
1971 – no Brasil e
1973 – em Portugal, com o Decreto-Lei n.º 32/73 de 6 de Fevereiro.
1975 – As duas Academias tentam um novo projecto de acordo, que não é aprovado oficialmente.
1986 – O Acordo Ortográfico de 1986 resultou do encontro dos – na altura – sete países de língua oficial portuguesa, realizado no Rio de Janeiro, a convite do presidente do Brasil, José Sarney. Este Acordo suscitou grande polémica em Portugal e no Brasil e não foi aprovado.
1990 – Surge um novo projecto de Acordo, este que agora nos ocupa.
Conclusão:
1. O facto de existirem duas ortografias consolidadas e oficiais para a língua portuguesa resulta da opção sistematicamente feita nesse sentido pelo Brasil, desde 1907.
2. A querela ortográfica não pode camuflar o facto de se tratar de duas normas distintas, que é impossível “uniformizar”, como nos diz Paul Teyssier: «Existem diferenças entre o português de Portugal e o do Brasil. Estas diferenças dizem respeito a todos os aspectos da língua, – fonética, vocabulário, morfologia, sintaxe. A própria ortografia não está ainda totalmente unificada. […] Há assim duas normas do português, formando cada uma delas um sistema autónomo e coerente. O estrangeiro que aprende a língua terá portanto de optar à partida quer pela norma portuguesa quer pela norma brasileira, e não sair dela. Mas todo aquele que quiser verdadeiramente dominar o português deverá, depois de possuir os mecanismos inerentes à norma que tiver escolhido, adquirir um certo conhecimento das principais características da outra. […]»
3. A dupla ortografia da nossa língua não tem a mínima importância e não impede, como não impediu até agora, nem a sua possível unidade, no respeito pela integridade das suas normas e variantes, nem a sua projecção universal, nem a sua difusão através do mundo.
4. Em Portugal – e até aos recentes desenvolvimentos em torno do Acordo de 1990, também nos restantes países lusófonos, onde o português europeu é (era?) a norma de referência – a ortografia em vigor decorre (decorria?), no essencial, do Acordo Luso-Brasileiro de 1945, que o Brasil rejeitou, como vem sendo hábito.
5. A aceitação do abastardamento da ortografia do português europeu, que o Acordo de 1990 pretende impor, porque é disso que se trata, é assim uma inadmissível cedência às ambições “linguístico-nacionalistas” e imperialistas do Brasil, vergonhosamente partilhadas por portugueses com responsabilidades académicas e políticas e com poder de decisão.
6. Tudo soa a falso no Acordo de 1990: a pretensa necessidade da “uniformização” que pretende promover, o “tom” adoptado, culpabilizante para Portugal, considerado responsável por ter feito a reforma de 1911 (“esqueceram-se” da de 1907, feita no Brasil) e por querer “teimosamente” conservar e “impor” as consoantes mudas a quem as deixou cair há muito, etc. Vale a pena ler!
Este Acordo foi “pensado” pelas duas Academias, para poder ser aceite pelos brasileiros, cuja ortografia pouco muda, com vista à internacionalização do português brasileiro (português.br)!
[Este estudo foi-nos enviado pela autora, Maria José Abranches, como comentário a um post aqui publicado com o título “Olhe que não, olhe que não“. Dado o seu mais do que evidente interesse, optou-se pela publicação integral e autónoma. Apenas o título deste texto foi por nós acrescentado.