‘Encontrei agora, entre muitos papéis velhos, esta pequena nota que escrevi há muitos anos em resposta a um pedido de depoimento sobre a “Lusofonia”, feito não sei por quem e publicada não sei onde. No fundo, e embora polémica, esta nota representa ainda o que eu penso sobre o conceito, para mim errado, de Lusofonia:’
Lusodisfonia
As frequentes situações de dificuldade de comunicação ou de estranheza entre falantes de Portugal e do Brasil (e a esse respeito eu teria muitas histórias para contar) fazem-me concluir que o termo ‘lusofonia’ não é adequado: atendo-nos à etimologia da palavra e ao processo histórico em geral, ela deveria referir-se a uma ‘forma de ordem’ comum a vários países, definida de um modo inquestionável pelos ‘parâmetros fónicos’ de um deles, Portugal.
Ora, na realidade, não é isso o que acontece: primeiro, porque se eu falar normalmente o ‘meu’ português, não sou espontaneamente entendido pela faixa sócio-cultural brasileira correspondente às camadas média-baixa e baixa que representam, ‘grosso modo’, para aí uns oitenta por cento da população dita (por nós e por quem mais?) ‘lusófona’; segundo, porque as camadas média-alta e alta da mesma população acham que eu falo português ‘com sotaque’, integrando-me assim numa ‘variante’ a uma ‘norma’, pelo que – onde arranjarei eu convicção para lhes explicar que todos somos lusófonos e que é a ‘norma’ por mim seguida (e que para eles não passa de uma variante à ‘norma deles’) que deve definir essa tal lusofonia?
Nestes termos, acho que não existe lusofonia, a não ser que nos restrinjamos apenas a um momento histórico que não me parece que seja o nosso: terá havido, algures no passado, uma ‘forma de ordem’ (que ‘a posteriori’ podemos classificar como ‘lusofonia’) que no entanto, e tal como as rosas de Malherbe, não terá durado mais que o espaço de uma manhã: dizem as leis da entropia que a desordem de um sistema tem tendência a aumentar com o tempo. Ora, as situações de dificuldade de comunicação a que me referi são o resultado destas leis, e deverão ainda ser encaradas à luz dos princípios da irreversibilidade (Heraclito, Clausius): por muito que nos custe a aceitar, a ‘desordem’ do nosso sistema linguístico está sempre a aumentar ao mesmo tempo e no mesmo sentido em que o mesmo sistema se vai expandindo, pelo que o que temos hoje é mais uma ‘lusodisfonia’ (ou seja, uma ‘forma de desordem fónica’, que tenderá a aumentar cada vez mais, no interior do sistema linguístico do português, conduzindo a novas ‘formas de ordem’ ou ‘normas’), e não uma lusofonia; daí que qualquer tentativa para ‘ordenar’ o sistema de acordo com a estratégia de que «eu sou a norma e tu a variante» (implícita no conceito de «lusofonia») conduzirá forçosamente a uma insustentável reversibilidade do princípio da exclusão: portugueses e brasileiros (e africanos, num futuro breve) acham sempre que é ‘o outro’ que fala com sotaque.
Perante isto, não há lusofonia que resista.
[Transcrição integral de “post” (público), da autoria de Luiz Fagundes Duarte, publicado na “rede social” Facebook em 22.03.15.]