A necessidade de reflectir
Por Maria do Carmo Vieira
publicado em 26 Mar 2015 – 08:00
Iniciada pelo secundário, a Reforma de 2003 foi porventura a mais chocante das reformas do Ministério da Educação (ME), pela consciência de estarmos a ser conduzidos por gente arrogantemente surda e simultaneamente incompetente. Em democracia, constatámos, de forma explícita, uma falta de respeito pelos professores, advertidos, na nota prévia que acompanhava os programas de Português, de que as suas críticas não “poderiam colidir com as metodologias apresentadas”. Em suma: uma mudança inquestionável, pautada pela “emergência do ‘professor novo’” e a “nova concepção de escola”. Esta é a que existe, continuando o ministério a não ouvir com seriedade os docentes.No cerne da mudança, um emaranhado de teorias da educação que avaliavam pela negativa os professores que, não “promovendo a mudança”, consideravam utopia os “mecanismos de diferenciação”, na mesma sala de aula, em relação “a gostos e preferências, ritmos de aprendizagem ou capacidades cognitivas dos alunos”, ou persistiam na preparação individual das suas aulas. Menosprezado foi também o conteúdo programático, e daí o seu esvaziamento de autores clássicos, no caso do Português, relegando-se para segundo plano a competência de um professor e o seu papel de transmissor de saber, na defesa de um “ensino centrado nos alunos” e na facilidade como estímulo para a aprendizagem. Absurdos que, contestados, continuam em vigor, nomeadamente na formação de professores e na sua avaliação, na estratégia de recuperação rápida ou na vontade de acabar com a retenção. Deverão salientar-se, contudo, como factor positivo, os novos programas de Português do secundário, nos quais foram reintegrados os clássicos.
Recentemente, o Conselho Nacional de Educação (CNE) avaliou a retenção como se se tratasse de uma doença a erradicar e não de um sintoma da degradação do ensino, que se tem vindo a acentuar. A solução, segundo David Justino, seu presidente, estaria em mais apoios, quando se sabe que estes não funcionam porque os alunos não têm tempo disponível nos seus horários sobrecarregados. Tempo é o que de contínuo se nega a professores e alunos, sendo flagrantes as situações. Os professores, por exemplo, não são ouvidos nas suas críticas à extensão dos programas, característica que lamentavelmente se mantém nos novos programas do secundário, com prejuízo para os alunos cujas provas de exame é também forçoso referir. Constituídas por diversas páginas, com vários textos e grupos temáticos, a que se junta uma avalancha de questões e de alíneas de escolha múltipla, terminando com a produção de um ou mais textos (ou mesmo em exercícios escritos, certamente para treino), perguntar-se-á como é possível pensar sobre o que se lê e o que se escreve em tamanho caos.
Ainda neste ambiente de mudança, tão propício ao aparecimento de aventureiros, ávidos de expor e vender novidades, surgiu, em 2004, a TLEBS, como “uma experiência pedagógica”, e pretensamente para uniformizar a nomenclatura gramatical danificada por outra aventura – a gramática “das árvores”. Considerada “incontornável” pelos seus autores e apesar da contestação (que continua) e da crítica contundente de linguistas de referência, a TLEBS mantém-se do 1.º ciclo ao secundário, aparecendo por vezes baptizada de gramática para iludir os incautos. No entanto, a descrição estéril e o “disparate” das designações denunciam-na rapidamente. A “experiência pedagógica” terá o seu fim (deixando estragos), e a gramática retomará o seu lugar.
O Acordo Ortográfico (AO) de 90 foi outra jogada de aventureiros na qual foram cúmplices muitos membros da classe política, do Presidente da República a deputados, contrariando a vontade dos portugueses, numa manifesta ignorância e insensibilidade perante o assunto. De referir que o ME deu um parecer negativo que foi esquecido.
Aproveitando-se o treino da facilidade e do miserabilismo, de novo a imagem das “pobres crianças”, salvas agora de uma ortografia “elitista” que as forçava a memorizar as palavras com consoantes surdas, que “os brasileiros haviam já abolido há muito”, persistindo em Portugal “por força da teimosia lusitana”. Um espelho da cientificidade dos argumentos expostos na Nota Introdutória do AO, cuja leitura se aconselha.
Da aliança entre prepotência e ignorância resulta o caos. Caos é o que se vive no ensino da língua portuguesa, com os professores coagidos a usar o acordo e deparando-se com múltiplos problemas suscitados pela análise de textos cuja escrita foi adulterada (estações do ano com minúscula, perdendo o seu carácter simbólico, confusão de sentido no uso do pretérito perfeito, 1.ª p. pl. sem acento como se fosse um presente, perda de acento em “pára” que transforma a frase de Bernardo Soares em “Quem simpatiza para”, e tantos outros exemplos que a falta de espaço nos impede de referir).
Forçar o cumprimento de um acordo estúpido e cheio de incongruências e penalizar os alunos, nos próximos exames, caso errem a sua aplicação, é uma decisão intolerável que exige a desobediência dos professores e a intervenção de encarregados de educação.
[Transcrição integral de artigo, da autoria de Maria do Carmo Vieira, publicado no jornal “i” de 26.03.15. Os “links” e destaques são nossos.]
Nota: na versão publicada na edição em papel do “i” existem algumas gralhas (da responsabilidade do jornal) nas frases destacadas, que não foram transcritas exactamente conforme o original.