Liceu de Ponta DelgadaDever cívico

A aula decorria com normalidade. Havia quem ensaiasse e lesse em voz alta, quem resolvesse exercícios em silêncio, quem analisasse um “texto icónico”, neste caso, uma pintura. Tudo deslizava e, tal como nos países modelares a nível de ensino, havia várias tarefas a decorrer simultaneamente, com produtividade e afinco. Apesar do burburinho dos lugares onde algo se produz, o melhor dos mundos, no que à aprendizagem diz respeito.

Por não ser possível ter em pleno funcionamento o computador da mesa do professor e a projecção para a turma, optou-se por apresentar apenas o que, na tela, poderia ser visto por todos, sendo que um aluno lia os parâmetros de avaliação da leitura.

Devido a essa mancha de gordura xaroposa e suscitando asco que é o chamado “Acordo Ortográfico de 1990” no vestido de noiva que era a Língua Materna, o aluno leu algo que não estava lá. Apodreci. Pedi-lhe que repetisse, incrédula: em vez de “diCção” – e por mimese do que tem visto em todo o lado -, o rapaz leu “dição”. Leu, pois, algo que, literalmente, não estava escrito. Actuou por imitação, qual psitacídeo. A mim, doeu-me, porque vi mais um a incorrer na acefalia dos que, representando-o, o deveriam proteger mas em vez disso, o traíram.

Um destes dias, um outro aluno leu “dialêto”, pois no seu livro estava escrito, de facto, “dialêto”. Estivesse a palavra correctamente grafada, ele teria lido “dialecto” (dialÉto ou dialÉCto). Palavra, que, aliás, dois ou três alunos já conheciam, pelo que quem leu, bem – porque leu o que lá estava – leu, de facto, mal – porque “dialeto” é um outro conceito que nada tinha que ver com o assunto da aula.

Que quero eu dizer com tudo isto? Apenas que quem diz não ser possível o (abjeCto) “Acordo Ortográfico 1990” mudar a pronúncia da Língua estar a mentir com quantos dentes tem na boca. MUDA, sim senhor. Deve ser, de resto, caso único no mundo: ter de se pronunciar uma boa parte das palavras de uma língua numa das suas línguas crioulas ou descendentes, neste caso, o chamado “Português do Brasil”, “Português americano”, “Brasilês” ou como lhe queiram chamar. A palavra “redação” é apenas um exemplo, motivo suficiente para que QUALQUER jornalista que se julgasse digno de ter esse nome na lapela se insurgisse, levando atrás a população. O mundo deveria avançar com os que, supostamente, sabem mais, informam, acusam, não com os que se apropriam do que a todos pertence e vendilham o Património. Também terei de chamar “a mídia” aos media – sim, sim, de origem latina! – daqui a uns aninhos?…

Surge, então, um novo paradigma: hoje, para saber como escrever em “Português moderno” – uma vez que o que eu aprendi e AINDA ENSINO AOS MEUS ALUNOS se chama, agora, nos meios de comunicação, “Português antigo” -, tem de ser pronunciar as palavras em “brasilês”…

Se o meu povo – que renego TODOS OS DIAS, porque me assumo como apátrida: já não sei escrever e, contudo, ensino; trabalho mais de doze horas por dia e, contudo, todos os dias sou roubada; ensinaram-me a amar a Pátria e, contudo, vejo-a prostituída ao capital e à estupidificação das modas –, se esse povo se boviniza, eu vou na direCção contrária, nado em contra-corrente, relapso-me e renego-o.

Se a partidocracia e as sociedades secretas dominam, eu voto contra. Em qualquer partido pequeno, principalmente se procura o bem comum. Se é pelo bem comum, se é contra os “instalados profissionais”, eu agitarei essa bandeira. Ensinaram-me, como às pessoas de bem, a odiar o corporativismo, a fulanização, os segredos que levaram Kennedy a ser assassinado por, contra eles, se ter abertamente oposto. Talvez porque assim se construiu a noção que ainda é válida, perante a lei: “boa-fé”.

Quem quiser, que continue a ver “I Pet Goat II”, de Heliophant e a discorrer sobre ele. Eu, que já vi e entendi, ajo: se alguém fundar um partido contra o chamado “Acordo Ortográfico de 1990”, eu voto nele.

O chamado “Acordo Ortográfico de 1990”, o dos “Portugueses Modernos”- e com o devido respeito pela vida humana -, cheira a campos da morte e a morte já é o país para onde todos nos dirigimos. Eu não assassinarei a Língua em que escrevo, com que sinto, em que penso, em que sou, que sou, que é eu, que se entranhou, que nunca será uma nódoa, que é, com tudo o que recebeu no tempo, um lótus: completa, inenlameável, única, saudadificável, minha, uma mistura inimixável por quem pensa que a comprou.

O Património, aquilo que é comum, que foi legado, é inalienável: não pode ser transferido, cedido ou vendido por qualquer prato de lentilhas. Mas compreende-se, num país onde já ninguém se “põe na pele” de ninguém, mas “nos seus sapatos” (put yourself in my shoes) e onde os casos de lesa-pátria não passam de “amendoins” (that’s peanuts), ou seja, nada do que é realmente importante passa de aperitivos num qualquer jogo de futebol ou reality show, afinal, estigma das sociedades acríticas, bovinas, alapadas até que, antes de ser cinzas e realmente legar Memória aos mais novos, o corpo é um mero veículo para transporte de cérebros em couve-flor com trapos na moda e cus de pedra, onde a posição fetal evita o trabalho de baixar as calças.

Termino de forma avessa a como comecei: por essas alturas, a aula JÁ NÃO decorria com normalidade, porque o sujeito se tornou tão passivo que é, agora um mero complemento, reduzido a um desses verbos copulativos a que se chama “verbo de encher”… E a refrega ainda mal começou: prevejo-me, pelo menos, um AVC, se um aluno se atrever a dizer-me, mais dia menos dia, que escrevo com erros… Ainda me faltam vinte anos disto. Siga.

Maria Oliveira

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