Errar de novo, irreparavelmente!
Diz o provérbio do Malinké:
«Um homem pode enganar-se em sua parte de alimento
Mas não pode
Enganar-se na sua parte de palavra
»
Sophia de Mello Breyner Andresen

Depois de nos hipotecarem o país e as nossas vidas, decidiram agora viabilizar aceleradamente o processo de destruição da nossa língua, património secular, estruturante da nossa identidade. Mais uma vez, a mania das grandezas, reverso de um indestrutível complexo de inferioridade, aliada à arrogância, à prepotência, à leviandade, à preguiça e ao desprezo por aquilo que na realidade somos, está prestes a lançar-nos numa aventura sem regresso. E isto continua assunto tabu, “politicamente incorrecto”, apesar de próximas as eleições legislativas, como aconteceu nas últimas presidenciais. Todos tão caladinhos e tão cúmplices os nossos políticos!

Todos os dias nos entra em casa a “crise” que estamos a atravessar e para a qual nos foram paulatinamente conduzindo os sucessivos governos por nós eleitos. Vêm agora alguns lançar sobre a “Europa” a culpa de todos os nossos males. Pessoalmente considero que, como o 25 de Abril, a nossa adesão à C.E.E. (agora União Europeia) e posteriormente ao euro, constituem momentos redentores na História do nosso país. Resta saber como aproveitámos essas ocasiões… Concebido para assegurar a paz, o desenvolvimento e o bem-estar entre os europeus, este projecto de cooperação política e económica, trouxe à Europa, cuja História faz jus à expressão latina homo homini lupus, um longo período de entendimento e de respeito mútuo. Mas a U. E. é um projecto em construção permanente, a exigir a nossa reflexão e intervenção cívicas e pelo qual somos todos directamente responsáveis, uma vez que somos nós que elegemos os políticos que aí nos representam. E neste, como em todos os projectos humanos, a qualidade humana dos intervenientes é determinante.

Posto isto, parece evidente que a nossa adesão à C.E.E. foi mal negociada por quem deveria ter sabido fazer as boas opções, defendendo os interesses do nosso país, a longo prazo. Os milhões que aqui entraram na altura não serviram para reestruturar de modo sustentável a nossa economia. Queixamo-nos hoje de ser apenas um país de serviços e de já não ter agricultura nem pescas, pois se abateram culturas e barcos, a troco de dinheiro. De quem foi a culpa? Quem aproveitou dessa benesse? E não me venham com o “choradinho” de sermos um país pequeno, periférico, do Sul, etc. Em termos populacionais, estamos no grupo dos países de dimensão média da União Europeia, a par da Holanda, da Bélgica, da Grécia, da República Checa, da Hungria, da Suécia, da Áustria e da Bulgária. A Dinamarca e a Finlândia têm pouco mais de 5 milhões de habitantes, para não falar do Luxemburgo que não chega aos 500.000. Que eu saiba, estes europeus não passam a vida a chorar, amuados, por não serem a Alemanha, a França ou o Reino Unido!…

Mas nós somos assim e, como não conhecemos a nossa História, nem os nossos “tiques” comportamentais, repetimos indefinidamente os mesmos erros. Estamos neste momento a “saldar” a nossa língua, o português de Portugal. Mais uma vez, a miragem das grandezas, agora à boleia do Brasil e da CPLP, sob a forma da “internacionalização da língua portuguesa” (versão portuguesa ou brasileira?) levou os políticos eleitos por nós a aprovar e recentemente acelerar a entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990, cujo objectivo principal é “impor-nos”, a ortografia brasileira. Assim, o primeiro passo para tão grandioso projecto é a destruição, o abate, da nossa própria língua! E para isto há dinheiro, e não deve ser pouco – basta ver quantos andam já a “governar-se” à sombra do Acordo – embora falte para professores de português no estrangeiro, nomeadamente junto das nossas comunidades…

Eu pergunto aos meus concidadãos: já leram o “Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, firmado em 25 de Julho de 2004, em São Tomé, na V Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP? Aí se diz, resumidamente: considerando que – o Acordo ainda não entrou em vigor por não ter sido ratificado por todos os Estados da CPLP (exigência do art.º 3º do Acordo, assinado em 16 de Dezembro de 1990); – desde 2002 “se adoptou a prática, nos Acordos da CPLP, de estipular a entrada em vigor com o depósito do terceiro instrumento de ratificação”; – em Maio de 2004, os Ministros da Educação da CPLP, “reiteraram ser o Acordo Ortográfico um dos fundamentos da Comunidade” e decidiram propor à V Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP a aprovação deste Protocolo Modificativo; “decidem as Partes” dar “nova redacção ao artigo 3.º do Acordo Ortográfico”: este “entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa”.

Preto no branco: é o Acordo e não a língua portuguesa “um dos fundamentos da Comunidade”; recorre-se a métodos democráticos de tomar decisões – “adoptou-se a prática” de “três” decidirem por oito (o documento confirma a adesão de Timor – Leste). Espantoso! E foi isto aprovado, em 16 de Maio de 2008, pela Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008 que, no seu artigo 2.º, determina os prazos e regras para a entrada em vigor do Acordo em Portugal! Os deputados eleitos por nós leram e entenderam os textos que aprovaram?!

Não! Não se trata de nenhuma “evolução” do português de Portugal, nem nos comportamos como “os donos da língua”, como de modo acéfalo vão repetindo por aí. Quando o Brasil optou por simplificar a sua ortografia, unilateralmente, em 1907, fê-lo em total liberdade. Quando depois, sucessivamente, desrespeitou os compromissos que entendeu fazer connosco, designadamente em 1931 e em 1945, fê-lo no uso da sua soberania, por entender, e com razão, que não devia alterar aspectos essenciais da sua ortografia, já consagrados pelo uso (questão das consoantes mudas e da acentuação). Nada disto, porém, dá aos nossos políticos o direito de nos “impor” as opções que o Brasil fez livremente, assumindo-se como “donos da língua” que nós usamos em Portugal! Obviamente, cabe também aos outros países da CPLP escolherem a ortografia que lhes convém, uma vez que não há “uniformização” e muito menos “unificação” possível à vista, nem com este nem com qualquer outro Acordo Ortográfico!

Lagos, 22 de Maio de 2011

Maria José Abranches

[Artigo de opinião, da autoria de Maria José Abranches, publicado no jornal Gazeta da Beira.]

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