O (Des)Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa: uma agenda oculta (I) (uma abordagem na perspectiva da Ideologia Linguística e Análise Crítica do Discurso)
António Filipe Augusto
No meu artigo publicado em 21 de Novembro de 2014, pelo Semanário O País, começo por sublinhar que “ a decisão acerca de adopção e/ou adaptação de um sistema ortográfico com fins de grafização de uma determinada língua ou conjunto de línguas é, e foi sempre, um processo de uma profunda investigação e aturados debates académicos, políticos e sociais e constitui um elemento preponderante entre os três pilares que sustentam o processo de Planificação Linguística, sendo por sinal, o elemento ‘sine qua non’ para a implementação da Política Linguística de um Estado”. No mesmo texto deixei claro que a “Política Linguística de um Estado sério e responsável”, e aqui acrescento, que se diz ser independente, “é concebida por uma equipa criada de forma transdisciplinar e inclusiva”, e aqui acrescento, e é de inteira responsabilidade desse Estado. A Planificação Ortográfica, por sua vez, constitui um elemento crucial, pois, ela é um dos três pilares do processo da Planificação Linguística.
Porém, nos primórdios da última década do século passado, Portugal e Brasil entenderam conceber e liderar um processo de planificação linguística, e mais precisamente uma reforma ortográfica da língua portuguesa a que denominaram por Acordo Ortográfico Unificado da Língua Portuguesa, cujo “objectivo explicito”, alegam, “é de pôr fim à existência de duas normas ortográficas oficiais divergentes”. Com esta planificação linguística, os protagonistas da referida reforma ortográfica advogam que o pretérito “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 pretende instituir uma ortografia oficial unificada da língua portuguesa” e “actualizar o sistema ortográfico que data desde o Acordo do ano de1945”.
Os proponentes da política impõem esta ortografia, de uma forma implícita, a todos os países falantes do português como língua oficial, mesmo não fazendo parte do processo inicialmente, ‘ipso facto’, sentiram-se na obrigação de “persuadir” as lideranças políticas dos países africanos que têm o português como língua oficial para aderir ao acordo, o que parcialmente acabaram “cegamente” fazendo. Este facto, leva os analistas de políticas linguísticas a uma perturbação, não somente académico, como político-social. Esta perturbação pode traduzir-se em várias inquietações, tais como: com que legitimidade podem Portugal e Brasil conceber a política linguística para os países africanos que se dizem independentes? Que tipo de independência clamam estes países ter se ainda são linguisticamente dependentes da sua potência colonizadora? Aqui, é preciso salientar que segundo a Ideologia Linguística, a independência de um Estado começa pela independência linguística, pois, a língua é um potente instrumento de controlo, de poder e de manipulação.
O objectivo deste estudo é revelar a agenda oculta por detrás do “Acordo Ortográfico Unificado da Língua Portuguesa” em plena era pós-estrutural (pós-moderna), onde o clamor para a coexistência de diferentes variedades linguísticas sem discriminação e/ou exclusão sociais ecoa persistentemente e alertar os fazedores das políticas linguísticas dos PALOP, e os de Angola em particular, para reflectir sobre a excessiva dependência da ex-potência colonizadora. Entende-se que é fruto da herança da ideologia linguística e política linguística coloniais, entretanto, a aclamação de apropriação da língua do ex-colonizador pela elite pós-colonial poderia levá-las a uma certa autonomia linguística, como podemos, por exemplo, observar com o inglês.
Cada país que tem o inglês tanto como sua língua única ou como língua oficial goza de sua autonomia. Provam isto nossos computadores: ao processar um texto em inglês, vem de imediato a referência (US English – inglês americano, UK English – inglês britânico, Indian English – inglês indiano, South African English – inglês sul-africano). Entretanto, escoadas que estão duas décadas e meia, depois de tantos investimentos realizados, ouve-se e nota-se por parte da elite política de Angola uma tendência regressiva. Senão vejamos: “PAÍS DEFENDE ALTERAÇÃO DAS BASES: Acordo Ortográfico está em discussão” – Jornal de Angola (Sábado, 11 de Abril de 2015, pág. 2). Lê-se logo no princípio do texto “O Ministério das Relações Exteriores apresentou quinta-feira, em Luanda, o estado do projecto governamental sobre a alteração das bases do Acordo Ortográfico da língua portuguesa de 1990, tendo em vista a sua próxima ratificação”.
Na qualidade de estudioso de Políticas Linguísticas e patriota angolano, acima de tudo, preocupa-me a constante indefinição do Estado Angolano e as ambiguidades discursivas provenientes dos diversos intervenientes políticos governamentais a volta do assunto, pois, não passa muito tempo que se ouviu, se a memória não me atraiçoa, da locução do Senhor Ministro da Educação, numa cerimônia de lançamento de um trabalho sobre o pretérito Acordo, que Angola não iria ratificar o Acordo Ortográfico de língua portuguesa, e agora, no texto em referência lê-se: “Angola não está parada nem fora do processo e cumpre todos os preceitos”. Autêntica inconsistência política!
Apesar de “os santos da casa não fazerem milagres”, senti-me na obrigação de simplificar este texto, que é resultado de uma análise académica, retirando dele o discurso científico e expô-lo para o consumo público, pois, ele já foi apresentado em diversos meios académicos e muitos leitores o hão de reconhecer. Este não é um mero texto especulativo, ele deriva de um estudo por mim realizado, conforme se pode constatar a seguir:
Olhando para os meandros pelo quais o denominado “Acordo Ortográfico Unificado da Língua Portuguesa” tem estado a se desenrolar, o estudo analisa os documentos políticos que conferem legitimidade à política e documentos técnicos que suportam e/ou saídos das sessões de trabalhos, a composição dos actores sociais envolvidos no processo e demonstra que de facto, o processo em análise, de per si, constitui uma reforma ortográfica e não um “Acordo Ortográfico” como os proponentes o querem denominar, pois, um acordo é um produto consensual derivado de um processo negocial, com o equilíbrio do poder negocial entre as partes nele envolvidas. É por aqui que começa o problema. Eis a seguir o figurino do pessoal envolvido
A composição dos actores socais envolvidos no processo revela uma relação de desigualdade do poder negocial. Senão vejamos: Para além da componente política a que preferia dispensar neste texto, verifica-se que o Brasil participa com a Academia de Línguas (Núcleo Internacional de Linguística Computacional). Do mesmo modo, Portugal com a Academia de Línguas (Instituto de Linguística Teórica Computacional), enquanto os países africanos, aglutinados em PALOP participam com Delegações inseridas no Instituto Internacional da Língua Portuguesa, (pertencente a CPLP, criado em São Luis de Maranhão, Brasil) sob liderança de um cidadão Brasileiro. A participação de Brasil e Portugal com academias especializadas e dos países africanos com delegações não especializadas, manipulados por um cidadão brasileiro denota um total desequilíbrio de poder intelectual, o que automaticamente gera assimetrias no poder negocial, que se pode traduzir em submissão dos países africanos, e de Angola, em particular.
Este desequilíbrio na correlação do poder negocial leva-me a recordar Bourdieu: “Cada evento discursivo é um processo negocial onde os agentes envolvidos impõem critérios de apreciação mais favoráveis do seu produto”. Que contribuição têm as “delegações” africanas concedido, e a angolana neste caso, ao processo? Pode-se aqui observar o modelo de correlação de força negocial criado para se falar em acordo.
Utilizando como fontes de dados “Escrevendo pela Nova Ortografia” e “Ortografia em Mudança” que contém o famoso vocabulário unificado, retirei delas uma amostra de 200 palavras e algumas citações que constam do texto. Porém, analisada que foi a minha amostra, obtive o seguinte resultado: somente 46, dentre as 200 palavras, apresentam a mesma grafia, as restantes 154 divergem em termos ortográficos.
Porém, baseando-me nas ambiguidades discursivas encontradas nos textos e no processo, com um olhar sereno para as temporalidades (os momentos de ocorrência dos actos) e a historicidade (a hostilidade da ideologia e política linguísticas coloniais portuguesas perante as línguas das suas colónias e a política linguística do Brasil que hostiliza as línguas das suas populações indígenes, tornando um País extremamente multilíngue em um Estado monolíngue), preocupou-me o facto que os protagonistas ocultaram: o acordo político entre Portugal e Brasil, que visa perpetuar o controlo e a dominação sobre os países Africanos da Língua Oficial Português, concedendo a hegemonia ao português, visando aculturar a chamada “África lusófona”. Nunca existirá uma África lusófona: mero cego conceito político!
O termo lusofonia deriva de uma “cábula” de palavra francophonie (francofonia), idealizada, introduzida e naturalizada pelo General Charles de Gaule e usado pelos famosos homens do Estado gaulês dentro da ideologia francesa de recolonizar as suas ex-colónias numa África póscolonial, com a criação do rótulo icónico de France-Afrique, extensão de França em África, utilizado por Mário Soares, ex-presidente português em 1989, mas que os outros políticos portugueses evitaram, com o receio de ofender as suas ex-colónias. A lusofonia é uma autêntica (re)produção e (re)formatação do lusotropicalismo.
Se a ideologia lusotropicalista se assentava num sustentáculo racial, a lusofonista assenta num sustentáculo linguístico. É vergonhoso observar o orgulho com que os políticos dos PALOP lidam com o termo. Angola
[Transcrição integral de artigo, da autoria de António Filipe Augusto, publicado no jornal angolano “O País” de 08.05.15. “Links” e destaques adicionados por nós.]