«É tipicamente português: mesmo aquilo que não faz sentido, aceitamo-lo com um encolher de ombros, esse sim, perigosamente mudo. Valha-nos, ao menos, a insistência da iniciativa legislativa de cidadãos contra o acordo (http://cedilha.net/ilcao/). Deviam assiná-la todos os que ainda não perderam a coragem.»
Nuno Pacheco

Agora que às criancinhas começa a ser servida nas escolas a nova e indigesta papa ortográfica (que muito trabalho há-de dar a pais e professores, sobretudo a explicar incongruências), eis que surge na revista Ler deste mês um extenso e magnífico artigo onde se dá conta da evolução da monumental farsa a que convencionou chamar-se Acordo Ortográfico ou AO90. Assinado e muito bem escrito por Fernando Venâncio, justifica por si só a compra da revista. Ao lê-lo, os que não sabiam ficarão a saber que, na fúria revolucionária dos primórdios da coisa, chegou a propor-se a abolição total da acentuação nas esdrúxulas: escrevia-se “polemico” e quem quisesse leria polémico, caso de Portugal, ou polêmico, caso do Brasil. E o “nosso” Malaca sugeriu até a supressão total dos hífens, o que daria coisas fantásticas como “bemestar” para “bem-estar” e “malingua” para má-língua.

Tudo à roda, como já perceberam, das temíveis contradições entre o que se diz e o que se escreve. Daí que os génios do AO tenham descoberto aquela que ficará como uma das afirmações mais idiotas deste jovem século: “Não se pronuncia, não se escreve.” É isso que dita, no AO, a morte das consoantes mudas. Mas serão assim tão mudas? Um exemplo curioso e brasileiro: no infinitivo impessoal dos verbos terminados em –er ou –ar, nunca o “r” é pronunciado. Comer, correr, bater, dever, diz-se naturalmente “comê”, “corrê”, “batê”, “devê”; tal como nadar, comprar, voar, andar, se diz “nadá”, “comprá”, “voá”, “andá”. Para lá da etimologia, não é difícil perceber que a vogal final é aberta por causa do “r” que fecha a palavra. Sem “r”, teríamos de ler “come”, “corre”, “bate”, “nada”, “compra”, “voa” e por aí fora. Por isso, a consoante aparentemente muda de tais palavras, afinal, “fala”. E acentua as vogais. Mas, como “não se pronuncia, não se escreve”, ainda um dia esse “r” fi nal será abatido.

Ora com as consoantes suprimidas em Portugal passa-se o mesmo. Por isso, aqui, espectáculo sem “c” só pode ler-se esp’táculo. Não há volta a dar a isto. No artigo já citado, Fernando Venâncio resume da melhor forma o problema (pág. 89): “O nosso magnífico idioma tem duas ortografias diferentes porque tem sistemas vocálicos divergentes. O fosso entre os dois vai-se, mesmo, alargando. Mil acordos ortográficos não conseguiriam uma reaproximação dos dois sistemas. Importa aceitá-lo com naturalidade e não interiorizá-lo como um drama.” Mas a isto o AO nada diz, cego na sua fúria de “unificar” que na verdade não unifica. O artigo lembra também este disparate: na entrada dos hotéis portugueses vai passar a escrever-se “receção”, por imposição do AO, enquanto no Brasil se continuará a escrever, e bem, “recepção”. Tão unificados que estamos…

Estranho é que, mesmo publicando artigo tão clarificador, a Ler passe a partir deste número a aplicar já o AO. É tipicamente português: mesmo aquilo que não faz sentido, aceitamo-lo com um encolher de ombros, esse sim, perigosamente mudo. Valha-nos, ao menos, a insistência da iniciativa legislativa de cidadãos contra o acordo (http://cedilha.net/ilcao/). Deviam assiná-la todos os que ainda não perderam a coragem.

Nuno Pacheco

[Transcrição integral de crónica da autoria de Nuno Pacheco publicada no jornal Público de 19.09.11. Link disponível apenas para assinantes.]

Nuno Pacheco subscreveu a Iniciativa Legislativa de Cidadãos pela revogação da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990.

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