Um responsável pela “coleção” Klássicos dizia há dias, no Facebook, sentir-se “lisonjeado” pelo artigo de Nuno Pacheco no Público, porque “mesmo a criticar a coleção, fê-lo construtivamente e divertidamente”.

Dificilmente se imaginaria tamanha cara de pau. O artigo de Nuno Pacheco é demolidor para a colecção Klássicos e não é possível confundir a sua ironia com o que quer que seja de divertido. Pelo contrário, o cenário que descreve para o futuro do nosso património literário é assustador.

Outra coisa não seria de esperar — a “coleção” Klássicos é, de facto, uma verdadeira obra de destruição da cultura.

Veja-se o caso de Gil Vicente, um dos autores afectados. José Bernardes, vicentista emérito e Professor da Universidade de Coimbra, diz-nos que já não é possível descodificar integralmente os textos de Gil Vicente. Dito de outra forma, os contemporâneos de mestre Gil divertiam-se certamente muito mais do que nós quando assistiam às suas obras. Ainda assim, acrescenta, é preferível fazer “o caminho possível” até Gil Vicente — e enriquecermo-nos nessa viagem — do que actualizar o legado vicentino.

Ora, isto é válido para qualquer obra. Actualizar, substituir palavras e expressões antigas por outras “atuais”, alegadamente mais familiares e acessíveis, é uma operação que apenas mutila o texto, e nada traz de novo para o leitor.

Diz a publicidade da “coleção” que a língua está sempre a mudar. Deste modo, devemos todos deitar fora “Os Maias” que comprámos na escola e adquirir uma nova edição. Que durará, no máximo, uns dez anos — porque a língua está sempre a mudar.

É verdade que a língua está em permanente evolução. Mas essa mudança, na sua espontaneidade, é sempre inclusiva. Cito novamente a publicidade da “coleção”: expressões como “Vossa Mercê”, “vossemecê”, “você” e até o brasileiro “cê”, convivem sem problemas. Cultura é conhecê-las a todas e conhecer o contexto adequado para cada uma delas.

Uma coisa é o significado de certas expressões ter-se perdido na noite dos tempos ou caído em desuso, outra é este crime de lesa-língua, em que o modo de escrever e de falar das gerações passadas é deliberadamente omitido às gerações vindouras. A pretexto de quê?

Se um clássico, como lembra Calvino, é um livro que não acabou de dizer o que tem a dizer, deixemo-lo então dizer o que efectivamente tem a dizer — e não outra coisa qualquer.

É claro que todo este desmando da colecção Klássicos não seria possível se não existisse um desmando ainda maior, chamado Acordo Ortográfico (AO90). Se mais argumentos fossem necessários para desautorizar o AO90, a colecção “Klássicos”, por si só, arrumaria de vez essa questão.

Em contrapartida, os argumentos a favor do “acordo” continuam a ser de uma pobreza franciscana. A começar pelo mais recente, enunciado pelo Governo: “o país já se comprometeu”. Não pode um acordo, qualquer acordo, ser renegociado?”

Mas veja-se também, por exemplo, uma entrevista já antiga na SIC Mulher, em que Edite Estrela fala numa pretensa “simplificação”, a pretexto de que as consoantes mudas são um foco de erros na aprendizagem da Língua. Na verdade, ensinar segundo o AO90 é ensinar menos. Menos História, menos etimologia, menos fonética. Porque não optamos por não ensinar, ponto final? Tudo se tornaria ainda mais simples. De resto, Edite Estrela esquece que essa simplificação é apenas aparente. Sendo a ortografia um caminho de ida e volta, alguém terá de descodificar — ou seja, ler — o que se codifica. Ao eliminar acentos e consoantes diferenciais, o AO90 cria efectivamente mais confusão — ainda que a empurre para o outro extremo da comunicação.

Deste modo, a “simplificação” com que se tenta “ajudar” os nossos alunos acaba por ser paga com juros. Juros esses que duplicarão, mal se inicie a aprendizagem de praticamente toda e qualquer língua estrangeira — seja essa língua filha directa ou adoptiva do latim. Chegado esse momento, lá terão os alunos de assistir à ressurreição das consoantes, que afinal não são mudas.

Na mesma entrevista Edite Estrela, com o sorriso condescendente de quem declara o óbvio, assegura que a confusão “à chegada” é evitada “pelo contexto da frase”. O que é verdadeiramente óbvio, e que Edite Estrela não enxerga, é que “tirar pelo contexto”, numa comunicação, é uma solução execrável, para dizer o mínimo. Numa mensagem, o importante é o conteúdo, não o seu suporte. Enquanto suporte, a boa ortografia (tal como a boa tipografia) quer-se como a arbitragem num jogo de futebol — não se dar por ela é o melhor elogio que se lhe pode fazer.

“A greve para os comboios”? É como se o escritor dissesse ao leitor “desculpe, mas não estou para ter o trabalho de lhe fornecer uma frase escorreita e isenta de ambiguidades. Faça o favor de parar a leitura, deixar a mensagem de lado, e decifrar o que raio quero eu dizer com esta escolha de palavras”. Qualquer escritor que se preze evitará sempre cair nesta situação. Naturalmente, com a nova norma ortográfica terá mais dificuldade em fazê-lo.

De facto, o AO90 não é boa ortografia. Insistir na sua aplicação é como insistir na construção do Aeroporto da Ota, depois de todos os pareceres e estudos, técnicos e financeiros, o terem desaconselhado.

A troco de quê? Que benefícios tamanhos compensarão tamanha troca de gato por lebre? Não será, certamente, para abrir as portas do Brasil à colecção “Klássicos”…

Fala-se na “internacionalização da língua” e na adopção do Português como língua oficial da ONU. Trata-se, obviamente, de uma falácia: por um lado, a “uniformização” da língua e a consequente perda de diversidade não seriam necessárias para esse objectivo — veja-se o caso do Inglês, com inúmeras variantes. Por outro lado, não é líquido que o objectivo em si tenha algum interesse prático.

De facto, no actual contexto, não faz sentido sobrecarregar o magro orçamento da ONU com mais traduções. A Turquia, a Índia, e o Bangladesh também estão há anos em campanha para fazer das respectivas línguas a sétima língua oficial da ONU. Nenhuma delas conseguiu esse objectivo por uma razão muito simples: é caro. A alternativa será pagarem essa distinção do seu bolso, tornando-se “línguas de trabalho”. Por um custo elevadíssimo, poderão assim aceder ao patamar do Russo, do Árabe, do Francês, do Espanhol e do Mandarim, isto é, ao duvidoso privilégio de poder exigir, sem grande veemência e sem grande sucesso, o respeito pelo seu estatuto, contra a hegemonia do Inglês.

Não sei quanto nos custaria semelhante operação junto da ONU. Nem quanto custará tudo o que envolve a transição para o AO90. Não sei porque ninguém fez essas contas. Mas sei que poupar esse dinheiro, mais ainda em tempo de crise, é um imperativo. O dinheiro que deixaremos de gastar será sem dúvida mais do que suficiente para indemnizar a Porto Editora e afins — a nossa Ota ortográfica — e para colocar mais professores de português onde verdadeiramente fazem falta. Isso sim, seria um gesto importante para a “internacionalização da língua”.

Claro que, mais importante do que o dinheiro, seria o facto de se poupar a Língua Portuguesa a mais atentados como o da colecção “Klássicos”. Não posso deixar de me interrogar… como interpretará o responsável da “Klássicos” a expressão “ne varietur”, se algum dia lhe passar pela cabeça editar Lobo Antunes? Teme-se o pior.

Rui Valente, subscritor da Iniciativa Legislativa de Cidadãos pela revogação da entrada em vigor do Acordo Ortográfico.

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