Portugal vive em sério risco de bancarrota. A carga fiscal esmaga toda a gente. As pensões de reforma estão a ser gravemente afectadas. O Serviço Nacional de Saúde e a ADSE vão-se ressentir da crise em medida incalculável. O mesmo se diga do sistema de ensino e do funcionamento das escolas. O desemprego não pára de aumentar. O endividamento externo e as taxas de juro também não.

Todos os dias surgem novos problemas que parecem sem solução. É urgente dinamizar a economia, mas a inevitável palavra de ordem dos governantes é economizar o mais possível nas despesas do sector público e levar o sector privado a poupar o mais possível no tocante a hábitos de consumos incomportáveis…

Talvez já tenhamos todos perfeita consciência da série muito extensa e dramática de conflitualidades, de empobrecimentos, de custos, de asfixias financeiras, de apertos de cinto… Nada poderá ser como dantes e por muito tempo nem sequer se poderá viver numa mediania decente.

Nesse quadro de catástrofe anunciada, é preciso afirmar mais uma vez, alto e bom som, que esta não é a altura de aplicar em Portugal uma coisa obscena chamada Acordo Ortográfico!

Nem a economia, nem o desenvolvimento, nem a aprendizagem escolar, nem a qualificação, nem a formação profissional, nem o combate à crise, lucram seja o que for com ele. Pelo contrário.

Essa aplicação traria custos terríveis: as famílias teriam de gastar rios de dinheiro em novos livros, manuais, dicionários e outros materiais escolares; tanto professores como alunos sentiriam os maiores problemas de adaptação; os custos sociais, por exemplo, no tocante aos idosos e até a certos deficientes, seriam igualmente graves; os editores (e não apenas os do livro escolar) veriam os seus stocks inutilizados; quanto aos restantes custos económicos, o melhor é nem falar.

O desperdício seria chocante: iriam para o lixo milhões e milhões de páginas que servem perfeitamente para o ensino!

Eu penso mesmo que será de fazer chegar à troika, ou aos seus delegados que se deslocam regularmente a Portugal, um dossier demonstrativo desta situação escandalosa e perdulária.

Em 8 de Abril de 2009, a Comissão de Ética, Sociedade e Cultura da Assembleia da República aprovou por unanimidade o judicioso relatório de Feliciano Barreiras Duarte, mas dessa situação não foram tiradas consequências práticas, políticas, jurídicas ou pedagógicas.

Isto é tanto mais grave quanto é certo que o Acordo Ortográfico não se encontra em vigor. Só por aberrante raciocínio jurídico poderia aceitar-se o contrário, uma vez que o documento não foi ratificado nem por Angola nem por Moçambique, pelo menos. Logo não produz efeitos na ordem interna de nenhum dos oito países subscritores.

Não vale absolutamente nada um protocolo laboriosamente parturejado na CPLP, para forçar os países que não querem acordo nenhum a “engolirem” o dito, lá porque houve três ratificações.

Esse protocolo também não foi ratificado. E há onze anos que esses países mostram que não querem o acordo. Lembram-se de que, por cá, havia uns responsáveis da Cultura que há uns tempos andavam a anunciar triunfalmente a ratificação iminente dele por Angola e Moçambique? Era já para dali a meia dúzia de dias…

Em Portugal houve, da parte das instituições políticas, uma espécie de onanismo abortográfico, tão lamentável quanto apressado, que nos cobre de ridículo ante esses países. E eles estão a fazer mais pela defesa da nossa língua do que nós.

A “aplicação” do Acordo a que se vem assistindo em Portugal viola nada mais nada menos do que… o próprio Acordo, uma vez que se está a abrir a porta à divergência ortográfica ao abrigo do delirante princípio das facultatividades.

Foge-se à norma por aplicação absolutamente insensível e estúpida da base IV do documento: no Brasil nunca se escreveu aceção, perceção, deceção, receção, espetador, rutura, perentório… Basta consultar um qualquer dicionário brasileiro.

Em Portugal está-se a adoptar uma série deplorável de dislates e pelos vistos pretende-se que eles passem rapidamente para as escolas, acelerando a desaprendizagem da ortografia.

Toda esta trapalhada sem nome significa que é preciso pôr cobro a um crime contra a língua portuguesa.

E para além disso, numa altura em que se fala tanto em conter despesas, não suspender imediatamente a aplicação do Acordo Ortográfico seria consolidar duplamente o reino da insensatez!

Vasco Graça Moura

[Transcrição integral de artigo da autoria de Vasco Graça Moura publicado no jornal Diário de Notícias de 29.06.11.]

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