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Já falou acordês hoje?
P2 • Segunda-feira 4 Julho 2011
Em Público
Nuno Pacheco

Há dias, na televisão, duas doutas meninas diziam, sorridentes, que os professores estão “inevitavelmente receptivos” ao Acordo Ortográfico (AO). Não espantaria se dissessem, em seguida, que os antigos condenados também estavam “inevitavelmente receptivos” ao patíbulo. O sorriso nos seus rostos dizia tudo. Recordam-se da TLEBS, aquela coisa cujo nome lembrava algo a cair por umas escadas abaixo? Pois a TLEBS foi dar ao AO. O que até faz sentido: TLEBS, AO. Primeiro a queda, depois o grito. O pior virá quando as doutas meninas tiverem de enfrentar as pequenas feras da sua aula. “S’tôra, porque é que quem nasce no Egito se chama egípcio e não egitiano?” Ou: “Porque é que eu escrevo concessão e leio concessão e escrevo conceção e leio concéção?

E porque é que temos de escrever conceptual se conceção [a palavra mãe] não tem p?” “O que é corréu, é alguém que corre muito e foi parar ao tribunal por causa disso?” E logo as meninas, inevitavelmente “recetivas”, dirão: “Cale-se, menino. É assim mesmo, é a lei.”

Com o passar do tempo, porque a ortografia serve a fonética, sinalizando os vãos e desvãos da fala, ouviremos coisas destas: “A menina vai ao esp’táculo?” “Não, q’rido, o âtor é pouco conc’tivo e o esp’táculo tem pouca âção, uma má persp’tiva. E os bilhetes são para um s’tôr péssimo, não se vê nada.” “Mas ao menos vai à reç’ção antes, não?” “O quê, com aquelas coisas penduradas no têto, com a sala com aquele aspêto? Vá sozinho, tenho outras opções.” “Opções? Mas esse pê não é contra a nova ortografia?”

Em 1988, num interessante ensaio intitulado Que Futuro para a Língua Portuguesa em África?, o emérito africanista Manuel Ferreira escrevia que “os Cinco” [países africanos] partiam “do princípio de que a língua é um facto cultural”, transformando o português “no plano da oralidade e no plano da escrita”. Para ele, o futuro seria assim: “A língua não é de nenhum para ser de todos. Não há por conseguinte um patrão. Todos são patrões. E se há uma língua, que é a língua portuguesa, há várias normas e logicamente umas tantas variantes: a variante da Guiné- Bissau, a variante de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, a variante de Angola, Moçambique, do Brasil, da Galiza, de Timor-Leste, a variante de Portugal.” Isto escreveu um homem culto e inteligente.

Nessa altura já se discutia por aí o desastre que mais tarde a ignorância fez lei: o trambolhão nas escadas (TLEBS) e o grito na queda final (AO). A língua feriu-se. Ou pior. Quando Olavo Bilac escreveu que a língua portuguesa era a “última flor do Lácio, inculta e bela”, sendo “a um tempo, esplendor e sepultura”, adivinhava a propensão dos vindouros para a sepultura (a unificação falsa) em detrimento do esplendor (a diversidade óbvia, respeitadora das diferenças evolutivas). Assim está a flor do Lácio moribunda, porque a fizeram rejeitar todas as suas filhas legítimas (aquelas de que falava Manuel Ferreira) e trocá-las por um bastardo analfabeto. Porque não é português de Portugal (o europeu), nem do Brasil (essa variante viva e criativa), nem das Áfricas ou longínquos Orientes. Chamemos-lhe acordês, mescla intragável a que nunca estaremos “recetivos”.

Nuno Pacheco
Jornalista

[Reprodução do texto e digitalizações por Rui Valente.

Nota: o link para este artigo bem como a área de comentários apenas estão disponíveis para assinantes no site do jornal Público.]

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