Acordo Ortográfico: o que importa, agora, é rejeitá-lo de vez
Por Rui Valente
Não se pode suprimir as chamadas consoantes mudas e esperar que se continue a pronunciar as palavras da mesma maneira-
No PÚBLICO de 9 de Agosto, Fernando dos Santos Neves apresenta “onze teses contra os inimigos do Acordo Ortográfico”.Vendo bem, não são onze teses. Fernando dos Santos Neves limita-se a contabilizar os parágrafos do seu texto e nem todos são teses.Alguns parágrafos repetem, por outras palavras, o que é dito em parágrafos anteriores; outros limitam-se a insultar quem está contra o Acordo Ortográfico.
Na verdade, o texto de Fernando dos Santos Neves assenta em dois ou três pressupostos que já foram por diversas vezes rebatidos, inclusivamente neste jornal, mas que, aparentemente, teremos de continuar a rebater.Diz Fernando dos Santos Neves que o Acordo Ortográfico é apenas um Acordo sobre a ortografia “e não um Acordo sobre o vocabulário, a sintaxe, a pronúncia, a literatura e tudo o resto”. Não é um Acordo sobre o vocabulário?! Não prevê o AO “um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível” – o qual, diga-se de passagem, ainda não existe?
Quanto ao “resto”, Fernando dos Santos Neves não pode ignorar que a língua, qualquer língua, é uma constelação de signos e de regras, orais e escritas, que se influenciam mutuamente. Não se pode, por exemplo, suprimir as chamadas consoantes mudas no Português europeu e esperar que se continue a pronunciar as palavras da mesma maneira.
O fechamento das vogais já era um fenómeno perceptível sem o AO – perceptível, desde logo, na dificuldade com que os brasileiros decifram a nossa pronúncia. Com o AO, deixarão definitivamente de nos entender. Aos olhos dos nossos irmãos do outro lado do Atlântico iremos todos parecer-nos, cada vez mais, com o Homem do Bussaco. Não deixa de ser um resultado um pouco estranho, tendo em conta que o Acordo pretendia “unificar”…
De resto, “decretar” que o AO só se aplica à forma como escrevemos e não à forma como falamos é uma veleidade que só pode passar pela cabeça de quem se julga dono da língua. É como abrir as comportas de um rio e ordenar à água que não corra.Diz Fernando dos Santos Neves, por outras palavras, que este Acordo é tão mau que, praticamente, só tem de bom o facto de existir. É certo que este “acordo” é mau mas, ainda assim, não é possível subscrever esta tese. A existência deste “acordo” mau, desde logo, ocupa o lugar de outro que, esse sim, faria da língua portuguesa “uma das pouquíssimas línguas potencialmente universais do séc. XXI”. Não contribui para a universalidade da língua um “acordo” que mutila em vez de integrar e que descarta a riqueza de variantes que, como se vê, são necessárias. Não contribui para a universalidade da língua um “acordo” que é omisso em relação às centenas de línguas nacionais dos diversos países da CPLP, muitas em vias de extinção, e que o Português, enquanto língua de contacto, pode ajudar a preservar. Não contribui para a universalidade da língua um “acordo” que é omisso em relação ao ensino da diversidade dessa mesma língua.Um outro Acordo, com “A” maiúsculo e sem aspas, que contemplasse tudo isto, seria certamente um Acordo muito mais forte e faria certamente muito mais pela criação de laços entre os países subscritores. O “acordo” actual nem sequer consegue fazer-se ratificar pela totalidade desses países.
Diz também Fernando dos Santos Neves que só o “acordo” impede o Ipiranga linguístico do Brasil, com a criação do “brasileiro”. Se os antiacordistas quisessem realmente jogar a cartada do patrioteirismo, haveriam de lembrar que o “orgulhosamente sós” ficaria, assim, no lado de baixo do equador. Como se diz no Brasil, o Brasil é grande mas não é dois. Decretando o “brasileiro”, o Brasil estaria a caminho de se tornar numa China pequena, um país com muitos falantes mas poucos fora das suas fronteiras. A universalidade, a escala planetária, o estatuto de língua oficial da CE, tudo isso é assegurado pelos restantes países da CPLP.Acredito que poucos antiacordistas quererão ver o Brasil fora deste barco. Até porque a descaracterização do chamado Português europeu não tem de ser um preço a pagar pela inclusão do Brasil. No entanto, se for, até onde irá a tolerância de Fernando dos Santos Neves? Vale tudo, desde que se continue a chamar Português à língua usada no Brasil – e em Portugal, por via do “acordo”?Diz ainda Fernando dos Santos Neves que, “mais do que questão “técnico-linguística”, o “Acordo Ortográfico” é uma “questão político-estratégica””. Já se disse nestas páginas que, quando os políticos decidem que a língua é demasiado importante para ser deixada ao cuidado de linguistas, os resultados não são bons. Por muito “estratégica” que seja a questão, o lado “técnico” não pode ser ignorado.
“Estrategicamente”, podemos achar que uma única fábrica de roupa pode servir toda a CPLP. Do ponto de vista “técnico”, convém lembrar que alguns países têm estações mais frias e as roupas que servem para uns poderão não ser adequadas para outros. Fernando dos Santos Neves desenterra mais uma vez a questão da supremacia alfanumérica do Brasil. Como somos menos, teremos de sujeitar-nos a passar o Inverno de t-shirt.
É preciso que se diga que nada, do ponto de vista “técnico”, nos diz ser necessário um Acordo Ortográfico – e muito menos este “acordo” – para a prossecução da “estratégia comum de desenvolvimento humano sustentável e de espaço geopolítico próprio no globalizado mundo contemporâneo”.Dispenso-me, obviamente, de responder às “teses” que recorrem ao insulto. “Salazarista” ou “colonialista”, “manifestistas a quem se deve perdoar porque não sabem o que dizem ou escrevem”, são termos que não cabem num debate sério e informado.
Já a “tese” final de Fernando dos Santos Neves é cativante, na sua simplicidade. Também não é uma tese, claro – é apenas um silogismo completamente arbitrário. Limito-me a parafraseá-lo, produzindo a “tese” equivalente, de sinal contrário: “até aqui já se disse e escreveu quase tudo e o seu contrário sobre e contra o novo “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”; o que importa, agora, é efectivamente rejeitá-lo de vez”. Subscritor da Iniciativa Legislativa de Cidadãos pela revogação da entrada em vigor do AO90.
Rui Valente
[Este artigo foi publicado no jornal Público de 13.08.11. Link disponível apenas para assinantes.