Jornal PÚBLICO de 17 de Dezembro de 2011
Debate Acordo Ortográfico
Um muito mau negócio
Na inexistência de um estudo aprofundado sobre a importância da língua escrita e falada — e na frivolidade com que são tratadas questões culturais magnas como esta — faz-se deste disparate que é o Acordo Ortográfico uma cortina de fumo aos interesses comerciais que nos apressámos a associar à emergente supremacia brasileira.
Numa espécie de fascínio pela simplificação (com o qual se desrespeitam, afinal, as especificidades dos países da CPLP) e no nosso tradicional deslumbramento perante o hedonismo e a “freak-o-naicisse” carioca, fala-se hoje, pateticamente, em todos os “Morangos” de todas as estações de televisão, uma espécie de lisboeta barato, que falsifica a sensação de fluidez coloquial com um analfabetismo genericamente consentido.
Por detrás do Acordo Ortográfico estão também equívocos como “o país é muito maior, nós precisamos muito do Brasil” ou, como até filólogos respeitáveis me dizem, “temos de estar de acordo com tudo o que seja simplificar”. Mas… simplificar o quê? Uma comunicação que realmente nunca foi estudada? Não se pode simplificar o que não é simplificável. E as regras e agruras da comunicação escrita e falada são parte da própria civilização. O que é complicado por natureza assim se deve manter e assim deve ser estudado.
Por outro lado, este Acordo Ortográfico causa tanto dano à gramática como à comunicação falada. É uma brutalidade cultural, em que Portugal tem responsabilidades históricas acrescidas.
Não estou a defender a supremacia do chamado português europeu. O que acontece — e isso é muito bem analisado por Diogo Mainardi na sua coluna na revista “Veja” — é que se parte do princípio de que no Brasil não foi ensinado o português europeu — quando seminalmente o foi.
Os países lusófonos têm produzido uma liberdade multiplicativa de formas e sentidos à língua portuguesa — que só é identificável, precisamente, vis-à-vis a origem latina do português europeu. É nessa origem que está não só a explicação da língua e portanto a permissividade possível à sua variabilidade, como também é nela que está a riqueza profunda da herança comum.
Rasurar a evolução de uma língua escrita por razões comerciais — quando na realidade sabemos que, pelo menos no caso do Brasil de Lula, isso foi feito, em grande medida, por analfabetismo próprio — é patético. Aceitar que os nossos governantes usem esse analfabetismo na lapela é aceitar que somos realmente tão pequenos como somos — e isto só pode ser um projecto de desespero nacional.
Escrevo no maior respeito e paixão pelo Brasil, sabendo que um dos equívocos com a repulsa pública do Acordo Ricardo Ortográfico tem origem em sentimentalismos patrioteiros, Pais pós-coloniais, indesejáveis e que funcionam “a-contrario” de qualquer projecto de comunidade cultural. Uma boa parte dos “patriotas” que defenderam o português daqui, defenderam-no por snobeira. Acontece que muito do que de novo foi gerado pela lusofonia, foi gerado a partir de nós. E, neste contexto, o Brasil é provavelmente o nosso filho mais pródigo.
Como não pode deixar de ser, o encontro permanente com esta cultura, que também é nossa, é da maior importância. Quando recebeu o prémio Camões, Maria Velho da Costa chamou a atenção para um património imenso: há, por exemplo, expressões portuguesas que hoje só se ouvem no Brasil. Fernanda Montenegro “recita” páginas de expressões e palavras do português ancestral que são mantidas no interior do país. Neste reconhecimento, o Acordo Ortográfico é não só um mau parceiro como também um estorvo.
Enquanto homem de teatro e da cultura, tive oportunidade de estar duas vezes no Brasil com dois textos funda- mentais. O segundo foi o espectáculo “Turismo Infinito”, composto exclusivamente por textos de Fernando Pessoa organizados por António Feijó. Estivemos em São Paulo em sete récitas sobrelotadas. 8100 pessoas viram o espectáculo, em êxtase e em entusiasmo.
Fizemo-lo com a mesma exigência no dizer que, ao longo de muitos anos, foi imagem de marca dos meus espectáculos — talvez de forma mais apoteótica e estruturada nos anos em que fui director e encenador residente do Teatro Nacional de São João, no Porto. Trabalhámos sempre uma espécie de norma na elocução. Esta norma seria impensável se não a relacionássemos com as equivalentes normas da escrita. Uma e outra são parte de um mesmo trabalho de enobrecimento da língua. Só a partir desse trabalho se pode falar em variação — ao limite, em variação dialectal — do português de origem.
Foi muito curioso verificar que, para muitos brasileiros, ouvir Fernando Pessoa pela primeira vez dito por portugueses era ouvir o português europeu pela primeira vez em todo o seu esplendor. E isto, mais do que qualquer Acordo, é o que eu considero absolutamente determinante para a afirmação da cultura portuguesa no mundo. Afinal, este Acordo Ortográfico é apenas um sintoma do desprezo pelo papel da língua e da cultura enquanto factores de afirmação da personalidade, também económica, entre países parceiros.
Alterar a norma do escrever significa alterar a norma do dizer — porque as vertentes da escrita e da leitura na ortografia não são estanques. Quebrar estas regras significa quebrar a nossa identidade. E, ainda que o Acordo Ortográfico seja mais prejudicial para Portugal, representa uma perda para todo o universo da Língua Portuguesa. Espero que a Iniciativa Legislativa de Cidadãos (cedilha.net/ilcao), cuja subscrição convido o leitor a fazer, possa ter êxito, para assim repor alguma da sanidade perdida nesta matéria.
Sou uma testemunha vivencial, apaixonada e muito comovida, do impacto tremendo que a língua portuguesa tem tido nos palcos da Espanha, de Itália, da França e sobretudo do Brasil. E, através dela, de um outro impacto da nossa literatura. Subalternizar a limpidez desta forma de comunicação com meia-dúzia de elisões e distorções “acordadas” em desrespeito total pela fonologia é muito mau negócio, mesmo para políticos de helicóptero.
Ricardo Pais, Encenador