Quem gosta do Acordo Ortográfico deve andar feliz. Num repente, jornais e revistas adoptaram o novo jargão, cuidando de que assim se tornariam mais modernos. Mas não se vê nenhum entusiasmo na opinião pública. As cartas que vão chegando, por correio tradicional ou electrónico, os comentários online, os textos nos blogues, tudo surge à antiga (quando não chega simplesmente mal escrito, com erros que dispensam acordos), enquanto do lado de lá das trincheiras se dá o martírio silencioso das consoantes.

No primaríssimo opúsculo “Atual”, dado à estampa em 2008, os seus autores Malaca e Dinis garantiam que “o novo Acordo Ortográfico apenas afeta [sic] a grafia da escrita e não interfere de modo nenhum nem nas diferenças nem orais, nem nas variações gramaticais ou lexicais”. Ora na página 15 diz-se que eléctrico passa a “elétrico” e espectáculo a “espetáculo”. Mas diz também que, “nos casos em que a consoante se articula, teremos, pois, a sua manutenção”. Exemplos: “bactéria”, “compacto”, etc. Mas se ninguém diz “batéria” ou “compato”, será que alguém diz “espetador”? Não, é claro. Pronunciamos “espéktador”, tal e qual. Sucede que alguém, por excesso de zelo ortográfico, resolveu ir mais além. Veja-se este despacho da Lusa, um entre muitos: “As duas primeiras jornadas da Liga portuguesa de futebol tiveram menos cerca de 14.000 espetadores na bancada.” Não é caso único: esta agência e, com ela, os jornais e revistas que usam os seus textos sem mudar uma vírgula também descobriram “espetadores” na Red Bull Air Race, no último filme de Danny Boyle, no automobilismo de Vila Real, no Festival do Sudoeste, até numa corrida de touros em Navarra – onde há “espetadores”, sim senhor, mas não costumam estar nas bancadas, estão na arena. Espetam bandarilhas e até espadas, não se dê antes o azar de o touro lhes espetar um desembolado corno.

O mais caricato de tudo isto é que, no Brasil, de onde supostamente partira a mania de atirar fora consoantes como quem descasca amendoins, ninguém escreve “espetador”. É verdade. Lá, onde se pronuncia “ispétadôrr”, escreve-se, e bem, “espectador”. Nós por cá, à cautela, preferimos a boa e velha via do analfabetismo. Que agora até tem um pretexto legal. Querem saber se um texto é escrito de acordo com as novas normas? Tirem-lhe consoantes. Não importa porquê nem a que custo. Umas consoantes a menos e aí está o vero texto. Cheio de “ação”. Muito “atual”. Definitivamente “correto”.

Mas a relação “espetáculo”/espectador também tem que se lhe diga. Como é possível fazer derivar a palavra “espectador” (bem dita e bem escrita) da palavra “espetáculo”? Como explicar nas escolas tamanha incongruência? Onde vai a palavra derivada buscar o “c”? Apenas à pronúncia? Ou à raiz antiga entretanto adulterada e desfigurada?

Se o disparate pagasse imposto, o Acordo de 90 chegava para liquidar a dívida pública. Como não paga, os liquidados somos nós e a língua.

Espetados contra essa parede de erros e misérias a que uma trupe de inomináveis malabaristas resolveu chamar lei.

Nuno Pacheco, Director Adjunto

[transcrição integral (manual) da crónica publicada no jornal Público de 18 de Outubro 2010]

Nota 1: este texto não está disponível online, a não ser para os assinantes do jornal; foi aqui transcrito dado o seu evidente interesse público.
Nota 2: esta publicação segue assim mesmo, sem revisão; logo que possível, poderá haver uma ou outra correcção, em função de conferência com o original.

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