«A desmontagem do “facto consumado”»
Por Teresa R. Cadete
Há algumas semanas, numa conversa ocorrida no meio académico, alguém questionou, como se falasse consigo próprio: “Pois, não gosto do AO, mas tenho de ver o melhor modo de implementá-lo sem dor”. Isto junto de alunos de uma faculdade sem política ortográfica definida. O docente em questão tinha na sua mão decidir o modo de usar a língua materna e participar a sua decisão aos alunos, justificando as razões da opção tomada. E, naturalmente, respeitando as opções destes.
Porquê então tal conformismo? No momento que atravessamos, e perante toda a argumentação exposta nos planos linguístico, cultural e jurídico, já se tornou público e notório que ninguém será prejudicado por criticar as arbitrariedades, as inconsequências, as irregularidades do texto do acordo de 1990 e das posteriores “emendas”. (Já falaremos da situação de quem é profissionalmente coagido a adoptar o AO.) Recentemente, tive de ler uma tese de mestrado escrita por uma candidata brasileira e que continha palavras como excepção, aspecto, perspectiva, recepção, etc. Creio que mesmo um acordista honesto se teria aqui interrogado vezes sem conta sobre a razão do sacrifício de uma erradicação de consoantes (que indicam a pertença a uma família de palavras) imposta ao português europeu.
Não nos iludamos. Por um lado existe uma aparente liberalidade, por parte das autoridades legislativas e governativas, face à possibilidade de resistir às imposições do AO, que reconhecidamente falham as respectivas metas em todos os planos (alegada correspondência entre oralidade e escrita, pretensa unificação da língua para o mundo da lusofonia, real assalto das editoras ao mercado brasileiro, esse em que porém os leitores que amam a língua compreendem sem esforço o português europeu; será que esse assalto visa os analfabetos, os leitores light?). Por outro lado, essa liberalidade não consegue mascarar o carácter totalitarizante de uma medida que confronta o cidadão comum a par e passo com uma língua em que ele não se re-conhece. Porque quem usa o acordês parece ficar isento de passar por esse processo sensorial e reflexivo tão primorosamente descrito por José Gil no texto publicado na Visão no passado 16 de Fevereiro. Engole a língua, sem a mastigar, e vomita-a como moeda de troca que se gasta por passar rapidamente de mão em mão, com valor de comunicação imediata.
Tomemos como exemplo a alegada percentagem de 1,6% de palavras alteradas no Português europeu (Daniel Ricardo, O Novo Acordo Ortográfico, publicação da Impresa distribuída com jornais e revistas em 2011, p. 13). Ora acontece que essa percentagem pode ser verdadeira se tivermos em conta a totalidade lexical, mas que eu saiba ainda não existe nenhum estudo sobre a frequência e recorrência do uso das palavras mais afectadas pela razia acordista. Os resultados dessa nova estatística ultrapassariam, de longe, a percentagem que pressupõe a colocação no mesmo plano de palavras como acção, concepção, espectáculo por um lado, e manati, ornitorrinco, equidno, por outro, essas espécies animais cuja classificação nos deu outrora que fazer nos bancos escolares.
Mas são aquelas palavras que nos ligam não apenas às nossas origens greco-latinas (nesta altura, os acordistas preparam a batuta para o estafado argumento da “pharmácia”, como se precisassem de aspirinas para as dores de cabeça que os argumentos críticos ao AO porventura lhes causam) mas sobretudo, e aqui reside na minha opinião um dos pontos mais sensíveis dos efeitos do AO, à grande família que partilha essas origens. Tal tradição linguística faz com que leitores em numerosos países europeus, e não só, possam entender textos noutras línguas. Nomeadamente, no português europeu.
Sendo porém apartados pela força de uma medida prepotente, ao arrepio de reconhecidos especialistas ao longo de mais de vinte anos, dessa família plural que não só pede meças numéricas à totalidade lusófona como possui uma genealogia que nos integra organicamente numa Europa que à superfície continua politicamente inquieta e financeiramente nervosa, os nossos filhos e netos que forem obrigados a ler pela cartilha acordês ver-se-ão privados dessa herança em nome de um injusto nivelamento que advém de uma concepção atrofiada de democracia.
É aqui que o politicamente correcto acaba por revelar um fundo elitista e perverso. Quem tem coragem de admitir o simples facto de um número limitado de crianças e adolescentes “ouvir dizer em casa” (outro argumento acordês de rigor científico mais que duvidoso) palavras em que a eliminação das consoantes mudas provoca uma insegurança na percepção semântica e no modo de pronunciar, precisamente porque passam a ser lidas como desconhecidas? Em nome de uma pretensa facilidade fonética que parece querer atribuir aos aprendentes do português europeu, como língua materna ou estrangeira, um estatuto semelhante ao do débil mental a quem o entendimento de conexões etimológicas provocaria traumas, priva-se a grande comunidade indo-europeia de uma partilha que acaba por nem sequer ser concedida, como já vimos, à grande irmandade lusófona. E a esta bastaria que, em Portugal e nos outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia, existisse uma Academia das Letras digna desse nome (ou de uma equipa competente plurinacional) que elaborasse um léxico contemplando todas as variantes do português, em plena igualdade plural. Isto a montante de todas os remendos pontuais e casuísticos que se queira fazer ao que nasceu torto e tarde ou nunca poderá endireitar-se. A grande família lusófona precisa, isso sim, de reconhecer-se na alegria criativa da diferença, não de ficar frustrada com rasuras injustificadas e arbitrárias. Não deitemos fora a criança com a água do banho.
Para acabar com o trauma, esse real, de confrontação diária com um p”rtuguês lightinconsequente e descaracterizado, só existe um caminho coerente: o de exigir a revogação do AO assinando a petição através do link http://cedilha.net/ilcao/. Porque o AO só se tornará num facto consumado se não houver um número significativo de cidadãos que se dêem a esse ínfimo trabalho.
Não quero terminar sem uma nota de solidariedade para todos aqueles que se vêem profissionalmente coagidos a aplicar o AO. Na verdadeira política, a que parte dos indivíduos pensantes em interacção, não há receitas. Deixo aqui a minha homenagem a essas pessoas que têm um caminho mais difícil para organizar formas de resistência a uma medida injusta, autoritária e irracional – porque é essa via que fará História, mas que também só se fará caminhando.
[Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito e são por definição de interesse público.]