Ortografia no Verão
Por Hermínia Castro
Imaginemos que nos diziam que doravante tínhamos de passar a representar o céu, por exemplo, de amarelo, em vez de ser de azul. Perguntávamos: porquê? “Porque sim.” Dizíamos: nós sabemos que não passa de uma representação e de uma convenção, mas porquê isto? Traz alguma vantagem? Fizeram estudos? Resolve alguma coisa? Melhora alguma coisa? E a resposta era sempre a mesma: “Porque sim”. Como se a opinião não fundamentada de meia-dúzia pudesse obrigar todos a fazer uma mudança sem sentido.
Agora troquemos a tonalidade do céu pela ortografia do português. Porque as alterações iriam unificar e simplificar, iriam aproximar a escrita da oralidade, seriam uma evolução da língua… ou “porque sim”? Vejamos.
Temos o irresistível argumento de aproximar a escrita da oralidade. Com pronúncias tão distintas como as dos alentejanos, timorenses, brasileiros, moçambicanos, cabo-verdianos, minhotos, guineenses, são-tomenses, açorianos, angolanos, etc., nada mais lógico senão dizer-lhes a todos que escrevam como pronunciam…? Quando estamos ao mesmo tempo a “unificar”, claro! Isto só como anedota. Será possível que haja quem ainda não tenha visto a contradição gritante deste disparate?!?
Mais irresistível ainda é o argumento de que temos que “ivoluir”. Impagável. Como se evoluir alguma vez pudesse significar cilindrar a riqueza e a diversidade do que quer que fosse, quanto mais de uma língua viva. Então porquê estas alterações, que implicam a desestabilização da ortografia com a introdução de milhares de novas facultatividades – leia-se também: ambiguidades – e com a invenção de “regras” absurdas e impossíveis de seguir, pois mais não são do que a consagração das excepções e dos erros? Ora, porque sim e está tudo dito.
Já sabemos que o destino de tudo no Universo é a entropia, mas será necessário dar um empurrão tão grande à ortografia da nossa língua? Temos uma ortografia que não é perfeita (aliás, nenhuma língua tem uma ortografia perfeita), mas introduzir mudanças aleatórias não significa melhorá-la. Muito pelo contrário.
Bem, então e agora? “Já está”, não é? Não! Felizmente, há uma maneira muito simples de resolver tudo isto: revogar (anular) a entrada em vigor do “acordo” “ortográfico” em Portugal. (A sério? Sim, sim, muito a sério.) Basta juntarmos 35.000 assinaturas (em papel) para entregarmos a Iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC) Contra o Acordo Ortográfico. É uma proposta de lei, tal e qual como as que são submetidas pelos deputados, mas com a diferença de sermos nós, os cidadãos, a apresentá-la. Parece-me uma óptima ideia. Passamos a vida a reclamar e a dizer que se fôssemos nós faríamos assim e assado e cozido e frito. Pois façamos, então. Já temos largos milhares de subscritores, precisamos de mais uns quantos. Se cada pessoa que ler este texto (e concordar um bocadinho) subscrever, já serão mais uns milhares. Se depois falar nisso a mais meia dúzia de pessoas, já serão mais meia dúzia de milhares. E assim por diante. Numa onda de cidadania a lavar o país dessa escrita empeçonhada.
É só ir a http://cedilha.net/ilcao, imprimir o formulário de subscrição, preencher, assinar e enviar. Pode enviar-se por correio tradicional ou electrónico (com o impresso digitalizado em anexo). Tem é de ser assinado em papel antes de enviar, que é o requisito fundamental (está tudo explicadinho na página). Bastam cinco minutos. E acreditar que podemos ajudar a reparar este erro tremendo.
Aproveitemos então o Verão, a contemplar o azul (e todas as outras cores) do céu, para pensarmos nas palavras. Queremos ficar com esta imitação patética de ortografia, imposta à força e sem razão, ou preferimos ter uma língua viva, rica e que seguirá o caminho que nós lhe quisermos dar? Pensem e contemplem, verão certamente o que quero dizer. Depois é só enviar o impresso. E voltar à contemplação do céu, mas desta vez com a satisfação de ter feito o que está certo e de ter ajudado a repor um pouco de bom senso no país. Para saber mais: http://cedilha.net/ilcao
[Transcrição integral de artigo da autoria de Hermínia Castro. In jornal “PÚBLICO” de hoje, 05.08.2012 – link disponível para assinantes.]
[Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito (quando dizem ou se dizem) e são por definição de interesse público (quando são ou se são).]