Nas primeiras imagens de uma deliciosa comédia de Ernst Lubitsch, A 8.ª Mulher do Barba Azul, vê-se um homem bem vestido a olhar a montra de uma loja na Riviera francesa. Franze o sobrolho quando lê este aviso: “Falamos alemão. Falamos italiano. Falamos inglês. Compreendemos americano.” Gary Cooper (é ele o actor) entra na loja e quando lhe perguntam “o cavalheiro, o que deseja?”, responde: “Pajamas.” Claro que era um americano. Porque se fosse inglês teria dito “Pyjamas”. Teria dito? De quantas maneiras poderá dizer-se uma mesma palavra? E de quantas nos é possível escrevê-la? As diferenças entre línguas, e particularmente entre variantes de uma mesma língua, têm sido ao longo dos séculos motivo de curiosidade ou de humor, mas nunca de conflito. São tão naturais como tudo aquilo que as fez nascer. Já agora: pijamas (que em Portugal se escreve com “i”) não é inglês nem “americano” – é uma palavra de origem persa.
Vem isto a propósito da mais recente “inovação” em matéria linguística. Num artigo recente, o economista italiano Edoardo Campanella (ver PÚBLICO de 8 de Agosto) defende “a adopção de uma língua comum” na União Europeia. Isto não teria que rejeitar as línguas existentes, que ele reconhece serem muitas (só em Itália, o seu país natal, há uns vinte dialectos regionais), mas levaria a que as línguas de cada país fossem para uso caseiro, sendo que em termos internacionais se usaria uma língua comum. Qual, ele não diz, mas só vê benefícios.
Voltemos a Lubitsch. O filme é de 1938, vésperas da II Guerra Mundial. Ora não foi por questões linguísticas que a Europa se emaranhou em vergonhosas carnificinas. Pretender, hoje, que uma “língua comum” serviria para aliviar preconceitos ou para agilizar a circulação no espaço europeu, é demasiado pueril. Língua internacional, não só à escala europeia mas mundial, já existe de forma natural e não precisa de substituto: é o inglês. Não o inglês culto, de Chaucer ou Shakespeare, mas uma amálgama tosca que toda a gente, mal ou bem, vai sabendo pronunciar ou, em última instância, até escrever. No Webster”s Inglês-Português, por exemplo, o “dilema” de Lubitsch resolve-se de forma prática escrevendo “pajamas, o mesmo que pyjamas” ou “pajamas, pyjamas = pijamas”. A matriz inglesa e a variante americana válidas, na escrita, ressalvando-se o país de uso. Aliás, mesmo sem ir até à estante, a Wikipedia faz o favor de nos informar que “muitas regiões, como o Canadá, Austrália, Índia, Nova Zelândia, África do Sul, Malásia, Singapura e o Caribe, desenvolveram as suas próprias variantes da língua”. Da inglesa, naturalmente.
Antes de Campanella, as ideias de “língua comum” não se recomendam. A novilíngua de Orwell, no seu 1984, trazia os traços do totalitarismo mais sombrio. E o esperanto, querendo ser uma língua de fácil aprendizagem para toda a população mundial (sem substituir as existentes, o que a aproxima da sugestão de Campanella), acabou por morrer. Línguas artificiais não vingam. E, no entanto, é sempre com o argumento da facilidade que o disparate linguístico se insinua.
Em Abril passado, na Bienal do Livro de Brasília, o escritor Ondjaki disse em voz alta o que muitos outros já terão pensado: considera-se um autor “de expressão angolana” e não portuguesa, como paternalmente o designam. Aquilo de que Ondjaki se queixa tem raízes num disparate idêntico ao de Campanella: a lusofonia. Ora a lusofonia não existe, tal como não existirá nunca uma “eurofonia”. São duas faces semelhantes de uma mesma farsa, inventadas para unir à força o que só encontra unidade forte na diferença. Se alguma coisa existe, no universo que usa a língua portuguesa como matriz (dela fazendo derivar riquíssimas variantes), é a uma polifonia: de vozes, de pronúncias, de diferenças iniludíveis. O actual acordo ortográfico, feito à revelia desta evidência, nasceu do mesmo absurdo que a “eurofonia” utópica de Campanella.
Pajamas, pyjamas, pijamas? Metro, metrô, andante? Sim, e depois? O mundo vive mais facilmente com isto do que com unidades feitas à custa da falsidade e da mentira torpe. A democracia fica mal de botas cardadas, sobretudo quando marcham sobre o que ainda nos resta de inteligência.
[Transcrição integral de artigo da autoria de Nuno Pacheco. In jornal “PÚBLICO” (Revista) de hoje, 12.08.2012. Link disponível apenas para assinantes do jornal.]
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