Qual será a razão para um escrevente, falante de português europeu e utilizador, por imitação, por gosto ou por imposição, do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) não grafar o C de facto? Por exemplo: “união de fato”. Sim, de fato. Quem diz “união de fato”, poderá também dizer “pressupostos de fato e de direito”, “alterações de fato e de direito”, “razões de fato e de direito”, “fundamentos de fato e de direito” ou “situações de fato…”. E de direito. De fato e de direito. Até mesmo “fatos imputáveis”. Qual o motivo para “tempo médio de contato”, “contatos e horários de atendimento”, “ajustamentos sem impatos” ou “impato praticamente nulo”? Em suma, qual a causa desta aversão a facto, contacto e impacto? Em meu entender, tais supressões consonânticas poderão explicar-se por o escrevente:
a) julgar que, ao abrigo da base IV do AO90, as consoantes C e P, quando em posição pós-vocálica e em final de sílaba, serão sempre suprimidas, independentemente de se pronunciarem ou não: se FACto, então, FAto, se conTACto, então, conTAto, se imPACto, então, imPAto;
b) acreditar que, ao abrigo do AO90, deve seguir sempre a prática brasileira (fato, contato) ou aquela que erradamente julga ser a prática brasileira (*impato);
c) admitir que, em português europeu, as consoantes C e P, nas condições mencionadas em a), não se pronunciam e, seguindo o “critério fonético (ou da pronúncia)” da base IV do AO90, não as grafa.Estas hipóteses poderão ser o reflexo quer da confusão criada pela Nota Explicativa do AO90, ao contemplar “facto e fato” e deixar o fardo dum esclarecimento “tanto quanto possível” aos “dicionários da língua portuguesa, que passarão a registar as duas formas em todos os casos de dupla grafia”, quer da forma como o Poder se deixou enredar em equívocos, prescindindo da agradável leitura dos pareceres que solicitou e mandando aplicar o AO90, em vez de previamente tentar percebê-lo.
É importante sublinhar que a fonte, ou o poço, destes fatos, contatos e impatos não é um papelucho capaz de deixar Carlos da Maia num espanto furioso e mudo. Estes fatos, contatos e impatos não são excessos de palhada encomendada a foliculário, por isso, mais imóveis entre as acácias nos deixam. Estão inscritos no Diário da República (DR), que tenta, desde 1/1/2012 e de forma atabalhoada, adoptar o AO90, não tendo a desastrosa experiência de 21/7/2010 servido de exemplo: uma fuga para a frente do conselho de administração do Banco de Portugal, que decidiu arriscar uma redacção AO90 do Relatório e Contas de 2009, com um amargo bónus de cinco impato e um impatos.
Ao contrário dos impatos, as ocorrências de fatos e de contatos têm sido frequentes no DR desde o início do ano. Estas ocorrências não são comparáveis, nem em número, nem em tipologia, a situações análogas anteriores à adopção do AO90. Aliás, considerando ocorrências, episódicas e com longos intervalos, antes de 1/1/2012 (gralhas, como contato em vez de contrato) e não haver memória de qualquer período com tal torrente de fatos em vez de factos, confirma-se que o AO90 veio perturbar de forma abrupta e desnecessária a escrita em português europeu, com consequências que podem ir além do plano escrito e com a agravante de um dos principais vectores ser o jornal oficial da República Portuguesa.
À ambiguidade da Nota Explicativa do AO90, juntou-se o coro institucional dos fatos. É possível que quem redige os actos publicados no DR, convencido da omnisciência daqueles que mandam, tenha partido do princípio de que quem tão diligentemente considera o AO90 um projecto essencial para a “unidade essencial da língua” tem a mínima ideia daquilo que está a defender. Depois de José António Pinto Ribeiro confessar que “Ato [sic] jurídico é fácil, agora “fato” em vez de “facto”…” (Diário Económico, 6/2/2010), de Gabriela Canavilhas estar convencida de que “daqui a dez anos ainda estou a escrever facto com cê” (Assembleia da República, 21/12/2009) e de Pedro Santana Lopes asseverar que “Agora “facto” é igual a fato (de roupa)” (Sol, 10/2/2012), era previsível uma enxurrada de “situações de fato e de direito”. Na redacção do DR, mas não só. Pode apreciar-se uma amostra, não só de fatos, mas também de contatos, impatos e afins, em colectânea organizada por João Roque Dias, com dados que merecem atenção, selecção e análise, pois reflectem o que actualmente se passa na escrita em português que por aí circula.
Não é segredo que o conhecimento ortográfico, fruto duma aprendizagem feita ao longo de anos de leitura e de escrita, influi na percepção dos “sons da fala”. Felizmente, sobre este tema existem publicações académicas redigidas em várias línguas, inclusive em português europeu. É igualmente sabido que a relação entre grafemas e fonemas não é o único factor a ter em conta quando se discorre sobre o plano grafémico ou, noutros termos, sobre ortografias de base alfabética. Contudo, os responsáveis pelo AO90, uns por desconhecimento, outros por desinteresse, nunca se preocuparam com estes aspectos fulcrais nos debates actuais sobre um tema cuja dimensão política toldou aquilo que verdadeiramente interessa. Como se perceberá da pequena amostra que apresentei, a base IV do AO90 veio perturbar inutilmente a estabilidade ortográfica do português europeu, pondo em causa os efeitos dos anteriores processos de sistematização. Contudo, não parece que quem manda esteja particularmente inquieto com o caos que instalou e para o qual contribui activamente na escrita e passivamente na procura de solução.
Por acção de quem pretendeu simplificar aquilo que, por definição, é complexo, passámos (e continuaremos) a ter escreventes perdidos na terra de ninguém entre planos diferentes da língua, indecisos diante duma consoante que não sabem se hão-de grafar, porque não sabem se a pronunciam, desnorteados por a memória gráfica não servir de amparo e completamente dependentes de recursos em permanente actualização e sem critério para uma fixação digna desse nome.
É a quem pela “unidade essencial da língua” se esquece de admitir que a pôs em causa com factores de desunião, como aspectos e aspetos, recepções e receções, infecções e infeções, contraceptivos e contracetivos, rupturas e ruturas, a quem decidiu perturbar a estabilidade do actual português europeu escrito, permitindo o enxerto de fatos, contatos e impatos, que se deve exigir quanto antes a anulação deste lamentável processo. Dêem o feito por não feito, cantem a palinódia. Pela retratação, é perceptível que o impacto está longe de ser nulo. A retractação é acto digno e responsável. O AO90 não é um facto consumado, é tão-somente um fato que não serve.
Devolva-se ao alfaiate.
Francisco Miguel Valada
[Transcrição integral de artigo de opinião da autoria de Francisco Miguel Valada, in “Público”, 13.11.12. “Link” disponível apenas para assinantes do jornal “online”.]
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