1 – Concorda com o Acordo Ortográfico?
Não concordo porque ele assenta numa lógica de empobrecimento da língua portuguesa, em nome de um objectivo de carácter pragmático – a sua melhor divulgação no estrangeiro – para o qual, estou convicto, se revelará inútil. A riqueza do nosso idioma radica, entre outras coisas, na sua diversidade. Uma padronização forçada, ainda por cima desvalorizando a etimologia, a sonoridade, a estética e a harmonia da língua, será sempre de lastimar. O voluntarismo excessivo de que Portugal deu mostras em todo este processo soa a capitulação.2 – Deveria ter havido uma consulta prévia aos profissionais que trabalham com a língua?
Presumo que tenha havido essa consulta. Sucede, no entanto, que transparece uma estranha ligeireza em muitas das soluções consignadas no AO, designadamente no que toca à supressão de consoantes mudas e à acentuação. Alguns casos mais flagrantes, de tão absurdos, entraram já, como se sabe, no anedotário nacional.3 – À luz do direito internacional, como vê o tratado internacional do Acordo Ortográfico, nomeadamente quanto ao número de ratificações exigidas para a entrada em vigor?
Do ponto de vista jurídico, esta é, na verdade, uma questão essencial. Um tratado multilateral restrito (com um número limitado de partes), como é o caso do Acordo Ortográfico (AO), entra em vigor logo que o consentimento a ficar vinculado por ele (através do acto de ratificação) haja sido manifestado por todos os Estados que tenham participado na respectiva negociação. A prática internacional revela, é certo – com respaldo na Convenção de Viena Sobre Direito dos Tratados, de 1969 (CV) –, a existência de muitas situações em que a entrada em vigor de uma convenção internacional ocorre a partir do momento em que se atinja um determinado número de ratificações (inferior ao número de Estados signatários). Simplesmente, essa é uma solução (atípica) que apenas se afeiçoa a tratados multilaterais gerais (com um número muito elevado de partes), numa tentativa de não entravar demasiado a sua conclusão. Quanto ao AO, aquele regime-regra, supracitado (o da ratificação por todos os Estados partes), apoia-se, convenhamos, num argumento a fortiori, porquanto se trata de consagrar uma ortografia comum para o português. Desiderato este incompatível com uma espécie de opting out, traduzido numa hipotética não ratificação por parte de algum ou alguns dos países da Lusofonia.4 – É possível a criação de uma ortografia unificada quando apenas três dos oito Países de Língua Oficial Portuguesa ratificaram o documento?
Eis, precisamente, a pergunta que deve fazer-se. Conforme se disse acima, seguramente que, em tais circunstâncias, não é possível a criação dessa ortografia comum. Tratar-se-ia mesmo de uma contradição nos termos, para a qual, de resto, os signatários do AO se haviam precatado, em 1990, prevendo a sua entrada em vigor quando todos os Estados partes o ratificassem. Ora, importará sublinhar que as disposições de uma convenção internacional relativas às modalidades da respectiva entrada em vigor são de impreterível observância desde o momento da autenticação (assinatura) do documento. Como tardassem, todavia, as ratificações exigidas, surgiu, expeditivamente, em 2004, o II Protocolo Modificativo ao AO, prevendo, ao arrepio do disposto no art. 24.º, nº4 da CV, a entrada em vigor do AO logo que apenas três (!) dos oito Estados de Língua Oficial Portuguesa procedessem à sua ratificação. Algo que, não cabe dúvida, atentou justamente contra o objecto e o fim do tratado. Mas o que, então, verdadeiramente importava era garantir, a todo o transe, aquela entrada em vigor… A isto acresce que mesmo no seio dos países que ratificaram o AO, as divergências sobrevindas são já tantas que parecem entrementes tê-lo ferido de morte.Francisco António de M. L. Ferreira de Almeida (Professor da Faculdade de Direito de Coimbra)
[Transcrição integral*** de entrevista (por escrito) a Francisco Ferreira de Almeida publicada no Boletim da Ordem dos Advogados n.º 88, Março de 2012. “Links” adicionados.]
*** O texto original em acordês publicado pelo “Boletim” da OA foi corrigido, evidentemente.