A qualidade do Ensino, e no caso específico da Língua Portuguesa, depende em muito da competência dos professores, o que significa estudo contínuo, espírito crítico, gosto pela matéria leccionada, conhecimentos de Pedagogia, em suma, que um professor seja um advogado à altura, lembrando palavras de Séneca.
Esta breve introdução serve para evidenciar que vivemos num mundo às avessas no que aos aspectos descritos diz respeito. Com efeito, são os professores obrigados a esquecer o que lhes foi ensinado e o que estudaram, sendo igualmente convidados a silenciar o seu espírito crítico, a sua experiência de anos de trabalho e os resultados obtidos pelos seus alunos, em nome de uma mudança transformada em dogma.
Os professores, seja qual for o seu nível de ensino, muitas vezes sob a ameaça de processo disciplinar, são forçados a obedecer:
1. A programas esvaziados de conteúdos, na sua maioria, de uma mediocridade confrangedora, devido a uma elaboração pouco cuidada e à ausência de um fio condutor que lhes dê sentido, e todos eles, sem excepção, centrados na estafada designação do «funcional», do «utilitário» e «do mundo real», numa tentativa de responder aos (pseudo) interesses dos alunos;
2. A uma Terminologia Linguística que constitui um «disparate»1, uma aventura que pretendeu substituir a Gramática tradicional, aquela cujas normas, na verdade, seria imperioso interiorizar e dominar. Ao contrário da Gramática que ensina a lógica da língua e a explica com clareza, e permite uma reflexão tranquila sobre a língua, a TLEBS, a tal terminologia linguística que avassalou o Ensino, do Básico ao Secundário, disseca-a impiedosamente, numa exaustiva e doentia obsessão descritiva em que abundam «palavrões»2 para extasiar os que não sabem Gramática, substituindo a clareza pela confusão e pelo caos. A TLEBS, diz-se, surgiu para «levar os alunos a reflectir sobre a língua», quando mais não faz que massacrar professores e alunos e anular o estudo basilar da Gramática;
3. Ao Acordo Ortográfico, ponto a que dedicarei obviamente mais espaço, e cuja Nota Explicativa espelha para qualquer um a brincadeira de mau gosto que constituiu a sua feitura. Com efeito, lendo-a, o que a maioria das pessoas não fez, nem tão pouco os deputados (na sua maioria) da Assembleia da República que, desconhecendo a matéria em causa não o souberam discutir (veja-se o conteúdo das actas), nem tiveram a preocupação de ouvir estudiosos creditados pelo seu trabalho.De uma forma leviana impôs-se este AO aos portugueses, na mais completa falta de respeito pela sua reacção, nomeadamente através de uma petição com milhares de assinaturas, e pela argumentação, até agora não contrariada, de autores de reconhecida competência linguística que em livros e em artigos sobre ele se pronunciaram. Como professora de Português devo igualmente registar o parecer da própria Direcção-Geral dos Ensinos Básico e Secundário que, a par de tantos outros, foi silenciada e esquecida numa qualquer gaveta: «Há acordos assináveis, sem grandes problemas e há outros que são de não assinar. O acordo recentemente assinado tem pontos que merecem séria contestação e é, frequentemente, uma simples consagração de desacordos.»
Perante a leitura da Nota Explicativa não sabemos se havemos de rir ou se havemos de chorar, como diria Las Casas, porque o absurdo e o ridículo são tão esmagadores que dificilmente se acredita que foram «peritos» quem escreveu tal paródia. Apenas dois exemplos retirados da «base IV, 1º,b) – justificação da supressão de consoantes não articuladas»:
c) «É indiscutível que a supressão deste tipo de consoantes vem facilitar a aprendizagem da grafia das palavras em que elas ocorriam. De facto, como é que uma criança de 6-7 anos pode compreender que em palavras como concepção, excepção, recepção, a consoante não articulada é um p, ao passo que em vocábulos como correcção, direcção, objecção, tal consoante é um c? Só à custa de um enorme esforço de memorização que poderá ser vantajosamente canalizado para outras áreas de aprendizagem da língua»;
d) «A divergência de grafias existente neste domínio entre a norma lusitana, que teimosamente conserva consoantes que não se articulam em todo o domínio geográfico da língua portuguesa, e a norma brasileira, que há muito suprimiu tais consoantes, é incompreensível para os lusitanistas estrangeiros […].»A falta de seriedade científica é tão crassa nesta Nota Explicativa que se chega ao ponto de, e ainda a propósito das consoantes mudas (p e c), se justificar a queda das referidas consoantes mudas pelo facto de «essas consoantes terem sido abolidas há muito na norma gráfica brasileira», querendo-se dizer que os estúpidos dos lusitanos teimosamente ainda as mantêm.
Aceitarão os professores, sobretudo os de Português, ensinar aos seus alunos incorrecções decretadas, só porque novo grupo de aventureiros, apropriando-se indevidamente da língua, que é um património colectivo, e descurando voluntariamente a discussão pública achou por bem privilegiar a «pronúncia» na ortografia, esquecendo a etimologia e a sua coerência gráfica, ou seja, o que, na verdade, nos permite reflectir sobre a língua e compreender o seu vocabulário? Que lógica existe em escrever a 3ª pessoa do presente do indicativo do verbo parar, sem acento (para), confundindo-a com a preposição «para»? ou em ser facultativo assinalar com acento agudo a 1ª pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo, em verbos da 1ª conjugação (falámos, criámos) para as distinguir das formas correspondentes do presente do indicativo (falamos, criamos)? Ou ainda escrever «Egito», mas depois «Egípcio? Ou eliminar a maiúscula em substantivos próprios como são os nomes das estações do ano ou dos meses do ano, retirando toda a substância, por exemplo, em poemas de Ricardo Reis, o heterónimo de Fernando Pessoa de cultura clássica?
Lamentavelmente, encontramos em documentação oficial novos vocábulos frutos do caos que este AO veio trazer. Alguns exemplos: «registrar, registrados, registro», «contacto, contatáveis», «setor e setorial»; por seu lado os alunos começam já a escrever, fruto de enorme confusão espalhada pela comunicação social e, em muitos casos, pelos próprios professores: «de fato, tacto, olfacto, contatamos, bateria ou batéria (conforme o gosto), e tantos outros exemplos que poderiam ser enumerados.
Conclusão: A existência deste Grupo de Trabalho na 8ª Comissão e as audiências que se têm realizado permitem que acreditemos que os problemas levantados por inúmeras pessoas, para além dos livros publicados sobre este tema, e que certamente serão (ou já foram) lidos pelos membros deste Grupo, serão tidos em conta, daí decorrendo certamente uma profunda reflexão sobre o grave problema instalado na
Escola com a implementação do AO, e também na sociedade.Lisboa, 28 de Fevereiro de 2013
Maria do Carmo Vieira
1 In «A Linguística da TLEBS», artigo publicado no Diário de Notícias, de 23 de Dezembro de 2006, de autoria do linguista Jorge Morais Barbosa que aconselhava «a suspensão do disparate». Mas, lamentavelmente, ainda continua…
2 Complemento oblíquo, hiperonímia, hiponímia, meronímia, holonímia, advérbios disjuntos reforçadores da verdade da asserção…
[Reprodução integral de documento, da autoria de Maria do Carmo Vieira, publicado na página de “Contributos” do Grupo de Trabalho parlamentar sobre o “acordo ortográfico”.]