(Des)acordo ortográfico: “insegurança ortográfica” (2)
1. Já afirmámos (artigo anterior) que o acordo ortográfico (AO) veio criar enorme “insegurança ortográfica”, onde esta antes não existia; subestimaram-se vários pareceres solicitados que alertavam para isso mesmo. Aliás, no ano passado, o Parlamento recomendou ao Governo a constituição de um grupo e trabalho para acompanhar o processo de aplicação do AO, com elaboração de relatório; que se saiba, nem grupo nem relatório.
Mostrámos já que a obsessão pela unificação ortográfica criou, em vez das duas, três grafias, patente em exemplos simples (portuguesa/brasileira): aspeto/aspecto, detetar/detectar, receção/recepção, conceção/concepção, deceção/decepção, perceção/percepção, espetador/espectador, perentório/peremptório, tática/táctica, espetro/espectro, cato/cacto, perspetiva/perspectiva, interceção/intercepção, etc. Assim se pretende que se escreva agora (em Portugal) “aspeto”, “conceção”, “perspetiva”, que antes se escrevia (Portugal e Brasil) “aspecto”, “concepção”, “perspectiva”, e que continua a ser “aspecto”, “concepção”, “perspectiva” (Brasil). Não entendo tamanha estultícia! Se eu escrever, por ex., a “receção do texto” em vez de “recepção do texto”, como evitar que o leitor não pense em “recessão”, se é isso que ouve a toda a hora e sofre no seu vencimento ou pensão? Um brasileiro, ao ler “receção”, não entende…
Como sabemos, a aprendizagem da ortografia não se faz só na escola: é um processo quotidiano, multímodo, que envolve a memória visual; escrever “Egito” causa calafrios: é um triste espectáculo, que já não tem espectadores mas “espetadores” (a primeira vez que li, pensei em “espeto”). Aliás, como é sabido, as grandes diferenças que separam as variantes portuguesa e brasileira da língua não são ortográficas, mas são lexicais, semânticas e morfossintácticas.
2. Sobre as consoantes não pronunciadas, importaria evitar a homografia, por ex., “acto”/“ato” (verbo), “corrector”/“corretor” (da bolsa), “óptico” (relativo à vista )/ótico” (relativo ao ouvido), sendo que, no Brasil, continua a escrever-se “óptico”; seria também imprescindível evitar a homofonia (por ex., “intersecção” e “intercessão”), como é necessário ainda evitar o fechamento vocálico (“acção”, “aspecto”, “baptismo”, “lectivo”, etc.). Note-se que o português europeu está a tornar-se, por vezes, dificilmente inteligível na oralidade, dada a tendência para fechar as vogais. Já um linguista advertiu que “adoção” (de “adoptar”) poderia conduzir à pronúncia de “adução” (de “aduzir”); este é um problema grave: as próximas gerações tenderão a ler “setor”, “receção”, “deceção”, etc., sem abrirem as vogais.
As consequências gravosas do AO saltam à vista: ao contrário de outras alterações ortográficas do século XX, este AO atinge aspectos estruturais da Língua Portuguesa. Todo este processo tem sido, pois, arrogante e autoritário.