Para um clarificador debate sobre o novo Acordo Ortográfico – (I)
“ SOS ” pelas matrizes genéticas profundas que constituem a via clássico-erudita da lexicogénese, da terminopoiese e da lexicodidáctica!…
Por Fernando Paulo Baptista
Nota Prévia: Parabéns, antes de mais, ao corajoso Poeta e Homem da Cultura— Vasco Graça Moura — que (muito embora correndo o risco de ser acusado de desrespeito deontológico no exercício do seu novo cargo institucional…) sabe conscientemente, por experiência quotidianamente vivida (ele «escreve» e sente na carne e na alma o que é que isso significa!…), que «letra» não é o mesmo que «som», que «grafema» não é o mesmo que «fonema», que «escrita» não é o mesmo que «pronúncia», que «texto escrito» não é o mesmo que «texto oral» e que, portanto, o actual Acordo Ortográfico [AO] (repare-se bem: «ortográfico», isto é, regulador e normalizador das práticas «escritas»!…) é uma aberração e uma insanidade eidético-linguística. E é-o, por ter sido concebido e elaborado na base do princípio «fono-cêntrico» de que «se não se pronuncia, corta-se», suprimindo assim (cf. a Base IV) sequências grafémicas como «ct» e «pt», entre outras: ex. «acto > ato», «espectador > espetador», «directo > direto», «infectar > infetar», «conceptual > concetual», «afectivo > afetivo», «Egipto > Egito» (agora, sem o «p», porque, segundo os “ilustres” autores do AO, não se pronuncia!…), este último, ao lado de «egípcio» e de «egipcíaco» (ambos com «p»)… Grande coerência esta, que o acordatário «fono-centrismo» traz ao «modo escrito» de realização da nossa língua!!!… E, por isso, se pergunta: alguma vez o anterior acordo – 1945 – impediu as pessoas de «pronunciarem» com toda a liberdade e variabilidade de registos orais, fosse no Minho, nas Beiras, no Alentejo, nas Ilhas, no Brasil ou em Timor?…
Da distinção diferenciadora entre «modo oral» e «modo escrito» de realização da língua
«… o problema da ortografia é o da palavra escrita,
nada tendo essencialmente que ver com a palavra falada…»
«… a tradição cultural, quanto à palavra escrita,
é a tradição etimológica…»
«… a nossa ortografia, quando, lentamente, se foi fixando,
fixou-se numa ortografia etimológica, baseada, é claro, no latim…»
«Como a pronúncia da palavra é só da palavra falada,
e se produz por sílabas, a palavra escrita nada tem com a pronúncia dela.»
«A letra e não a sílaba é a «unidade» na palavra escrita.»
Fernando Pessoa: A Língua Portuguesa (ed. de Luísa Medeiros),
Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, págs. 29, 36, 48, 58 e 58, respectivamente)
À luz dos excertos acabados de transcrever (intencionalmente retirados de uma alumiante obra dedicada à língua portuguesa pelo mesmo e genial Autor do tão famoso exergo — «Minha pátria é a língua portuguesa.» — que tanta gente faz alarde em citar, quase sempre fora do seu rigoroso contexto discursivo, sem porventura alguma ter lido, na íntegra, as duas páginas da obra em que ele efectivamente está inserto (cf. Fernando Pessoa, através do seu heterónimo Bernardo Soares: Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998 [edição de Richard Zenith], § 259, pp. 254-255), torna-se cada vez mais imperioso e urgente «abrirmos os olhos», porque a «ortografia» não releva nem deveria relevar propriamente de um desígnio de inspiração «fono-centrista» e «anti-grafémica» («anti-alfabética») orientado pelos critérios da «pronúncia» e da «oralidade», na medida em que ela, «ortografia», implica, acima de tudo, as capacidades e actividades de «ler» e «escrever», a envolverem, portanto, a intervenção da «mão» e do «olhar», mas de um «olhar» arguto, inteligente e crítico, de um «olhar» que verdadeiramente seja capaz de «ver»…
Por sua vez, a «oralidade» (nome etimologicamente relacionado com o lexema latino os, oris que quer dizer «boca») não radica propriamente numa base de natureza «gráfica». Repare-se atentamente na designação «acordo ortográfico» (orto + gráfico), em que o formante adjectival “gráfico” pertence à mesma família do verbo grego γράφω [grapho], verbo que é portador da raiz indo-europeia — *gerbh- / grebh- / gṛbh- [> graph-] —, com o significado matricial de gravar, fazer incisões na pedra ou na madeira, marcar, escrever…
Ora as actividades da natureza práxico-grafémica concretizam-se com a mão, sob o comando vigilante dos olhos, e não com a boca e com os ouvidos. De notar que aquela referida raiz está igualmente presente em vocábulos como gramática, grafia e grafema (= letra), bem como autógrafo, biografia, caligrafia, cartografia, etnografia, epigrafia, geografia, lexicografia, ortografia, etc., etc., sendo de lembrar, a propósito, que o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, na entrada «-grafia», regista mais de 200 vocábulos pertencentes a esta mesma família lexical.
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