Portugal recebeu o epíteto de bom aluno pela sua submissão às exigências das instituições internacionais que, arvoradas em bons professores, lhe têm indicado o caminho da “salvação”. Um aluno cordato, muito ao gosto dos professores mais exigentes.
“Ah, mas isso já todos sabemos!” – comentarão alguns. – “Não se fala de outra coisa!”.
É verdade. Nos últimos tempos, o estribilho repete-se até à exaustão. Curiosamente, fica-nos na boca o sabor amargo de se tratar não de um elogio que pretenda enaltecer as qualidades de sensatez, perseverança e espírito de sacrifício, mas apenas de uma expressão insultuosa que envergonha muitos portugueses.
Tudo isto se passa no contexto da malfadada crise financeira e económica que, tendo assolado o mundo em 2008, teima em castigar com maior severidade precisamente os “bons alunos”.
O mesmo Portugal cordato que abnegadamente ofereceu o pescoço à pata que o esmagou, já se revelara um cordado desprovido de esqueleto, quando, tendo ousado, em 1911, levar a cabo a Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa sem consultar o Brasil, logo se prontificou a reparar o erro, convidando o “país irmão” a juntar-se-lhe na simplificação da ortografia. Prazeiroso, o Brasil aceitou o convite “tardio”, em 1915, para capitular logo em 1919. O mesmo se passou com o Acordo Ortográfico de 1945, mas desta vez decorreram dez anos até à retirada do Brasil.
E o que fez Portugal, o bom aluno? Nada!
E eis que chegou a hora de mais uma tentativa de unificação – o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (AO90), mais os dois Protocolos Modificativos que lhe estão associados. E Portugal decidiu tratar o Brasil com toda a deferência – não que lhe fosse devida, obviamente, mas porque somos um povo cordato, cordado, mas invertebrado. Tudo isto é sobejamente conhecido de quase toda a gente.
O que talvez tenha escapado a muitos, é que existe um instrumento jurídico internacional – a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (adiante referida por “Convenção”) – que Portugal ratificou pelo Decreto do Presidente da República n.º 46/2003 de 7 de Agosto, suportado pela Resolução da Assembleia da República n.º 67/2003, que dá conta da aprovação. A ratificação do Brasil viria a concretizar-se mais tarde, pelo Decreto do Executivo 7.030/2009, com reserva dos artigos 25 e 66.
No artigo 2.º da supramencionada RAR 67/2003, lê-se:
«(…) Nestes termos, Portugal declara que, na sua relação com qualquer outro Estado que formulou ou formule uma reserva cujo efeito seja o de não se vincular no todo ou em parte pelas disposições do artigo 66.o [Procedimento de resolução judicial, de arbitragem e de conciliação], não se considerará vinculado em relação a esse Estado nem pelas normas processuais nem pelas normas substantivas da parte V da Convenção, relativamente às quais deixam de se aplicar os procedimentos previstos no artigo 66.o em virtude da referida reserva. (…)»
No entanto, o cordato país que assim declarou continua a sentir-se vinculado ao tratado que assinou (AO90) com o Brasil, alegadamente porque devemos uma reparação que data de 1911. Não, não devemos reparação nem satisfações a ninguém pelos regulamentos de aplicação interna. Muito pelo contrário: não seremos nós credores de alguma reparação, ou pelo menos satisfação, pelas retiradas de 1919 e 1955?
A Parte V da Convenção [Nulidade, cessação da vigência e suspensão da aplicação dos tratados], referida na declaração de não vinculação de Portugal ao abrigo do artigo 2.º da RAR 67/2003, reza assim, no artigo 42.º [Validade e vigência dos tratados]:
«1 — A validade de um tratado ou do consentimento de um Estado em ficar vinculado por um tratado só pode ser contestada de acordo com a presente Convenção.
2 — A cessação da vigência de um tratado, a sua denúncia ou a retirada de uma Parte só podem ter lugar de acordo com as disposições do tratado, ou da presente Convenção. A mesma regra vale para a suspensão da aplicação de um tratado.»
Como é sabido, o Senado do Brasil suspendeu a aplicação do AO90 até ao fim do ano de 2015. Como foi? Tudo de acordo com a Convenção?
E Portugal, o que fez?
Foi cordato, como sempre. E como sempre, cordado, mas invertebrado!
Isabel Coutinho Monteiro