A independência de Timor é um
acontecimento de significado histórico extremamente relevante
no processo de descolonização global, ao qual forneceu
princípios-guia a Carta das Nações Unidas, e os Estados
dominantes forneceram a sinuosidade derivada da evolução dos
seus interesses privativos.
No caso presente, a
referência mais importante, no que respeita à evolução da
política internacional está, possivelmente, no facto de a
opinião pública mundial ter desempenhado um papel determinante
para que as forças indonésias invasoras abandonassem o
martirizado país, uma demonstração de que é necessário contar
com tal nova variável nos exercícios de
prospectiva.
Talvez a criação dos tribunais penais
internacionais, quer os criados pelo Conselho de Segurança,
quer o Tribunal Penal que entrará em funcionamento este ano,
não seja apenas um efeito colateral da emergência dessa
opinião pública, como elemento autónomo condicionador dos
comportamentos das soberanias e dos
regimes.
Naturalmente, nenhuma das contribuições para
que o resultado final, depois de tantos milhares de vidas
sacrificadas, de recursos destruídos, de futuros impedidos,
fosse alcançado, deve ser esquecida, e cada uma merece ser
prezada.
Mas a primeira e mais valiosa de todas elas
foi a própria determinação do povo, a decisão de não aceitar a
submissão, a resistência sem olhar ao preço humano do
confronto.
É apenas justo salientar a contribuição
portuguesa, a unanimidade das forças políticas, a sintonia dos
órgãos de soberania, a excelência da diplomacia, e o apoio sem
quebras da opinião pública.
Por sua vez, a ONU exerceu
uma função mediadora, não formalizada, no que respeita aos
interesses das potências que participaram no processo
intermédio da pacificação e reordenação da sociedade
timorense, para finalmente ocupar o lugar separado e
independente na comunidade dos povos, que Jefferson algures
atribuiu à vontade divina, e que os herdeiros da sua
inspiração por vezes tardam em reconhecer.
Não é
todavia plausível imaginar que a reconciliação da sociedade
civil timorense, dividida por anos de catástrofe, dispense a
atenção permanente e empenhadíssima dos líderes carismáticos
que a guiaram, e que ainda assim seja possível impedir atritos
internos e sobressaltos vindos do exterior.
A
consolidação das solidariedades civis, capazes de tirarem
vantagens das divergências políticas, é um trabalho longo,
certamente tornado mais exigente e penoso pela carência de
recursos económicos, de estruturas reconstruídas e
desenvolvidas, de frutos do esforço educativo agora iniciado,
de distância ganha em relação ao passado próximo, dos
benefícios que uma teoria do esquecimento proporciona para o
reencontro das gerações.
A independência política chega
a Timor depois de dezenas de anos de subjugação por um poder
externo brutal, apoiado ao menos pela omissão de soberanias
hegemónicas, anos em que a ambicionada soberania mudou
globalmente de conteúdo, e as hierarquias das potências
inteiramente se alterou.
Ainda que tudo deva ser feito,
e se espera que seja feito, para que a soberania timorense
ganhe em consistência e se aproxime rapidamente do modelo
internacional dos novos tempos, o evidente é que Timor precisa
que, simultaneamente, lhe seja reconhecida a dignidade
completa que a natureza de Estado recebe do direito
internacional e da cortesia das nações, e ainda que a
dependência do apoio externo seja vista como inspiradora do
dever de cooperação e ajuda que lhe devem os responsáveis
directos e indirectos pelo segundo drama, incluindo o
genocídio, que o seu povo sofreu na mesma geração.
Do
lado português, a unanimidade que apoiou a luta pelo
reconhecimento da justiça que merecia a identidade e liberdade
dos timorenses permanece sem enfraquecimento quanto a essa
ajuda e cooperação na dimensão das possibilidades
nacionais.
Não será de mais esperar que os países da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, ainda que
limitados nas suas disponibilidades, e sobretudo o Brasil,
dêem o exemplo persistente da solidariedade efectiva,
mobilizadora e exigente face à comunidade internacional, para
que a proposta de Kofi Annan referente à presença da ONU para
além da independência, tenha substância e
valia.
Designadamente, para que as agências
especializadas reservem uma contribuição merecida para a
participação nos planos de reconstrução e desenvolvimento do
Governo timorense.
Sobretudo, para que as potências
mais responsáveis pelo drama de Timor, de resto com visível
interesse ou nos seus recursos naturais ou na sua posição
estratégica, contribuam com um apoio consistente mas
respeitador da dignidade do novo Estado, para que uma bem
conduzida batalha pelo futuro ajude ao apaziguamento da
memória dos erros do passado.