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Médicos
todo-o-terreno
As ONG
para a área da Saúde que a UNTAET distribuiu pelos 13 distritos de
Timor Loro Sae tinham por obrigação garantir a formação de pessoal
de Saúde e dar assistência à população. A AMI, no território há dois
anos, enviava os seus «Indiana Jones» da clínica geral para os
lugares mais inacessíveis do país.
Fotografias de António Pedro Ferreira Texto de
Cristina Peres
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A primeira infância é a mais afectada pelas
más condições sanitárias em que vivem as populações servidas
pelas clínicas móveis da AMI
| A
partida estava marcada para as 7h15, hora de sol já alto em que, se
se sair rapidamente de Díli, se consegue ter uma experiência amena
do clima da ilha. O Land Cruiser da AMI - Assistência Médica
Internacional, organização não-governamental (ONG) portuguesa
fundada em 1984 - dirigia-se à cidade de Gleno, onde estava
instalada a segunda maior clínica, a seguir à da capital. Gleno fica
no distrito de Ermera, a sul de Díli, em cujo subdistrito de
Letefoho se encontra o ponto de destino do dia: Limea Craik.
Duas vezes por mês, a clínica móvel AMI levava
assistência médica a Limea Craik e Atsabe, localidades cujo acesso
está dependente do capricho das condicionantes climatéricas. A
verdade é que, ao longo de todo o ano, os doentes nunca sabem a que
horas chega a clínica e a equipa nunca sabe a que horas regressa:
depende se se consegue chegar, de como se consegue e do número de
consultas que houver a fazer.
De Gleno a Limea Craik medeiam uns escassos 40
quilómetros que, para alegria da expedição, foram percorridos sem
novidades em muito pouco menos de três horas (!). Não se registaram
enxurradas, nem se deu de frente com surpresas inultrapassáveis
provocadas pelas fortíssimas chuvadas. Nem mesmo o caudal do rio que
tem de se atravessar para lá chegar comprometeu a passagem. Depois
da dificuldade em galgar os precipícios da montanha, é um alívio
encontrar as pontes novas e os troços reconstruídos na zona de
intervenção do batalhão de engenharia do Bangladesh. Obras recentes
e que se destacam em relação aos troços de estrada desaparecidos ou
literalmente partidos em degraus pelos aluimentos de terras.
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 | O dia em Limea
Craik foi «calmo», com 144 consultas realizadas naquela grande «sala
de espera» ao ar livre, entre as 11h e as 16h30, por uma equipa
composta por um médico, enfermeiros, técnicos e um tradutor.
Mani é um filipino de 30 anos que trabalha em «zonas
rurais» há cinco, desde que concluiu a licenciatura em Medicina.
Encontrava-se na Austrália a caminho de umas férias com a família
quando viu o anúncio da AMI para Timor Loro Sae e não hesitou em
alterar os planos. Ao fim daquele dia extenuante, era de longe o
mais animado e enérgico, uma espécie de Indiana Jones da clínica
geral a gabar-se com o colega de Gleno do dia em que os dois
atenderam 320 doentes. Limea Craik prova que a paisagem timorense
pode ser surpreendentemente insólita. Depois de muitos quilómetros
serpenteantes pelos precipícios que a montanha oferece a altitudes
dignas de esquecimento, a planície surge quase a perder de vista,
pontuada por coqueiros altíssimos, manadas de búfalos em pastoreio e
cavalos magros montados pela população local em desafio à velocidade
dos Land Cruisers. No fim de todas essas variações, o terreiro onde
se junta a população para a consulta descansa sob a sombra de uma
enorme árvore de um dos lados da qual está uma casa telhada a chapas
de zinco. Trata-se de uma excepção, num território onde foi ateado
fogo a mais de noventa por cento das casas e cuja reconstrução
começa pelos edifícios públicos da antiga administração indonésia,
ainda agora ocupados pela administração transitória das Nações
Unidas, UNTAET.
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A clínica de Gleno já deixou de ser sede da
AMI. Desde 30 de Setembro que é gerida pela administração
distrital de Ermera, conforme previsto
| A
casa de Limea Craik onde decorreriam as consultas era um antigo
posto de saúde indonésio, do qual restaram as paredes e já se refez
o telhado. A ausência de janelas permite a ventilação natural, havia
uma secretária e uma cadeira de madeira para o médico e o posto de
despistagem da malária funcionou no terreiro, na parte de trás
aberta do Land Cruiser que partiu da clínica de Gleno. Este suco (o
que equivale, mais ou menos, a uma freguesia) onde a AMI chegava até
ao final do mês de Setembro é constituído por treze aldeias onde
duzentas e poucas famílias perfazem uma população de quase
novecentas pessoas. Damião de Oliveira Martins, capaz de chamar pelo
nome próprio cada uma daquelas pessoas, é o presente chefe de suco
desde que o anterior chefe, de quem foi secretário de 1982 em
diante, fugiu em 1999 para Atambua (Timor Ocidental). É um homem de
quarenta e dois anos que fala um português escorreito aprendido até
à quarta classe antes de 1975. Pede desculpa por tropeçar nas
palavras mas, explica, esteve vinte e cinco anos sem falar
português, não só por causa da proibição indonésia mas por não ter
mais ninguém com quem falá-lo.
O protocolo de recepção é rigoroso: as cadeiras
colocadas à sombra da enorme árvore esperam pelos «convidados»
frente aos quais o chefe de suco se senta numa cadeira isolada. É
servido um grande jarro de café açucarado. Os homens sentam-se no
banco que rodeia o tronco da árvore, as mulheres esperam de pé a
consulta com as crianças ao colo. O chefe responde a todas as
perguntas com o à-vontade de quem quer contar uma história: aquela
foi uma zona quente de intervenção das milícias cujas «queimaduras»
só deixaram escapar cinco das quase quatrocentas casas do suco. A
população manteve-se escondida no mato mais de vinte dias e só a
destreza dessas manobras por parte de quem conhece bem o território
lhes permitiu escapar aos regressos das milícias, quando já não
havia nada para destruir.
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A auto-suficiência dos postos de
atendimento foi um princípio que orientou a formação do
pessoal de Saúde e a gestão dos «stocks» de material
| Mais
de um ano depois, já feita a distribuição pelas missões, pelas ONG e
pelos contingentes militares das chapas de zinco para cobrir as
casas do suco, as cicatrizes de uma destruição rápida são profundas:
aqui, a população maioritariamente agricultora assistiu ao roubo dos
búfalos com que trabalhava a terra e mexia os arrozais. «Como é que
vamos viver ao lado dessas pessoas que queimaram as nossas casas?»,
pergunta Damião, ciente que agora é «a democracia e a escolha do
povo» que manda. Disposto a abdicar da chefia do suco caso volte o
fugitivo de Atambua, Damião sabe que por muito boa obra que tenha
feito ao longo daquele tempo, se o povo não o escolher a ele, só lhe
resta, na melhor das hipóteses, voltar a ser secretário de chefe de
suco.
Apesar da diversidade de Timor Loro Sae, Limea Craik é
um bom exemplo das idiossincrasias da organização territorial e dos
receios que assaltam o povo em geral. As pessoas estão habituadas às
adversidades do clima e à aspereza do relevo, mas não é por isso que
a localidade vive menos isolada. A fraca nutrição e as péssimas
condições sanitárias contribuem para a propagação das infecções de
pele, da malária e do dengue, estas últimas responsáveis por muitas
das mortes na região, como confirmava o despiste feito durante as
consultas.
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Os homens passam geralmente à frente das
mulheres e crianças na maneira pouco ordenada mas ordeira de
se fazer atender pelos médicos
| À
semelhança do que foi acordado com outras ONG e como estava previsto
desde que chegou, há dois anos, a Timor, a AMI retirou-se do
distrito de Ermera mantendo a clínica e o centro de apoio a
refugiados oriundos de Timor Ocidental, em Díli. Com a gestão dos
centros de saúde a depender, desde 30 de Setembro, das
administrações locais, a clínica móvel da AMI cessou funções. Apesar
do investimento na formação dos quadros técnicos que substituem os
disponibilizados pelas ONG nos treze distritos do país, não é de um
dia para o outro que os cuidados médicos passarão a chegar a todos
os timorenses. Como acontecerá a partir de agora em muitas outras
localidades, os habitantes doentes de Limea Craik e de Atsabe terão
de percorrer as montanhas no sentido inverso. 10
A despistagem da malária confirma os
números - continua a ser uma das principais causas de morte,
em especial entre as populações rurais
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Os habitantes do suco aguardam, de cócoras,
no chão e à sombra da grande árvore. O dia avança sempre
quente até desaparecer o Sol
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