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10/11/2001


 
 
 
 
 
 
Médicos todo-o-terreno

As ONG para a área da Saúde que a UNTAET distribuiu pelos 13 distritos de Timor Loro Sae tinham por obrigação garantir a formação de pessoal de Saúde e dar assistência à população. A AMI, no território há dois anos, enviava os seus «Indiana Jones» da clínica geral para os lugares mais inacessíveis do país.

Fotografias de António Pedro Ferreira
Texto de Cristina Peres
 

 
A primeira infância é a mais afectada pelas más condições sanitárias em que vivem as populações servidas pelas clínicas móveis da AMI
 
A partida estava marcada para as 7h15, hora de sol já alto em que, se se sair rapidamente de Díli, se consegue ter uma experiência amena do clima da ilha. O Land Cruiser da AMI - Assistência Médica Internacional, organização não-governamental (ONG) portuguesa fundada em 1984 - dirigia-se à cidade de Gleno, onde estava instalada a segunda maior clínica, a seguir à da capital. Gleno fica no distrito de Ermera, a sul de Díli, em cujo subdistrito de Letefoho se encontra o ponto de destino do dia: Limea Craik.

Duas vezes por mês, a clínica móvel AMI levava assistência médica a Limea Craik e Atsabe, localidades cujo acesso está dependente do capricho das condicionantes climatéricas. A verdade é que, ao longo de todo o ano, os doentes nunca sabem a que horas chega a clínica e a equipa nunca sabe a que horas regressa: depende se se consegue chegar, de como se consegue e do número de consultas que houver a fazer.

De Gleno a Limea Craik medeiam uns escassos 40 quilómetros que, para alegria da expedição, foram percorridos sem novidades em muito pouco menos de três horas (!). Não se registaram enxurradas, nem se deu de frente com surpresas inultrapassáveis provocadas pelas fortíssimas chuvadas. Nem mesmo o caudal do rio que tem de se atravessar para lá chegar comprometeu a passagem. Depois da dificuldade em galgar os precipícios da montanha, é um alívio encontrar as pontes novas e os troços reconstruídos na zona de intervenção do batalhão de engenharia do Bangladesh. Obras recentes e que se destacam em relação aos troços de estrada desaparecidos ou literalmente partidos em degraus pelos aluimentos de terras.

O dia em Limea Craik foi «calmo», com 144 consultas realizadas naquela grande «sala de espera» ao ar livre, entre as 11h e as 16h30, por uma equipa composta por um médico, enfermeiros, técnicos e um tradutor.

Mani é um filipino de 30 anos que trabalha em «zonas rurais» há cinco, desde que concluiu a licenciatura em Medicina. Encontrava-se na Austrália a caminho de umas férias com a família quando viu o anúncio da AMI para Timor Loro Sae e não hesitou em alterar os planos. Ao fim daquele dia extenuante, era de longe o mais animado e enérgico, uma espécie de Indiana Jones da clínica geral a gabar-se com o colega de Gleno do dia em que os dois atenderam 320 doentes. Limea Craik prova que a paisagem timorense pode ser surpreendentemente insólita. Depois de muitos quilómetros serpenteantes pelos precipícios que a montanha oferece a altitudes dignas de esquecimento, a planície surge quase a perder de vista, pontuada por coqueiros altíssimos, manadas de búfalos em pastoreio e cavalos magros montados pela população local em desafio à velocidade dos Land Cruisers. No fim de todas essas variações, o terreiro onde se junta a população para a consulta descansa sob a sombra de uma enorme árvore de um dos lados da qual está uma casa telhada a chapas de zinco. Trata-se de uma excepção, num território onde foi ateado fogo a mais de noventa por cento das casas e cuja reconstrução começa pelos edifícios públicos da antiga administração indonésia, ainda agora ocupados pela administração transitória das Nações Unidas, UNTAET.

 
A clínica de Gleno já deixou de ser sede da AMI. Desde 30 de Setembro que é gerida pela administração distrital de Ermera, conforme previsto
 
A casa de Limea Craik onde decorreriam as consultas era um antigo posto de saúde indonésio, do qual restaram as paredes e já se refez o telhado. A ausência de janelas permite a ventilação natural, havia uma secretária e uma cadeira de madeira para o médico e o posto de despistagem da malária funcionou no terreiro, na parte de trás aberta do Land Cruiser que partiu da clínica de Gleno. Este suco (o que equivale, mais ou menos, a uma freguesia) onde a AMI chegava até ao final do mês de Setembro é constituído por treze aldeias onde duzentas e poucas famílias perfazem uma população de quase novecentas pessoas. Damião de Oliveira Martins, capaz de chamar pelo nome próprio cada uma daquelas pessoas, é o presente chefe de suco desde que o anterior chefe, de quem foi secretário de 1982 em diante, fugiu em 1999 para Atambua (Timor Ocidental). É um homem de quarenta e dois anos que fala um português escorreito aprendido até à quarta classe antes de 1975. Pede desculpa por tropeçar nas palavras mas, explica, esteve vinte e cinco anos sem falar português, não só por causa da proibição indonésia mas por não ter mais ninguém com quem falá-lo.

O protocolo de recepção é rigoroso: as cadeiras colocadas à sombra da enorme árvore esperam pelos «convidados» frente aos quais o chefe de suco se senta numa cadeira isolada. É servido um grande jarro de café açucarado. Os homens sentam-se no banco que rodeia o tronco da árvore, as mulheres esperam de pé a consulta com as crianças ao colo. O chefe responde a todas as perguntas com o à-vontade de quem quer contar uma história: aquela foi uma zona quente de intervenção das milícias cujas «queimaduras» só deixaram escapar cinco das quase quatrocentas casas do suco. A população manteve-se escondida no mato mais de vinte dias e só a destreza dessas manobras por parte de quem conhece bem o território lhes permitiu escapar aos regressos das milícias, quando já não havia nada para destruir.

 
A auto-suficiência dos postos de atendimento foi um princípio que orientou a formação do pessoal de Saúde e a gestão dos «stocks» de material
 
Mais de um ano depois, já feita a distribuição pelas missões, pelas ONG e pelos contingentes militares das chapas de zinco para cobrir as casas do suco, as cicatrizes de uma destruição rápida são profundas: aqui, a população maioritariamente agricultora assistiu ao roubo dos búfalos com que trabalhava a terra e mexia os arrozais. «Como é que vamos viver ao lado dessas pessoas que queimaram as nossas casas?», pergunta Damião, ciente que agora é «a democracia e a escolha do povo» que manda. Disposto a abdicar da chefia do suco caso volte o fugitivo de Atambua, Damião sabe que por muito boa obra que tenha feito ao longo daquele tempo, se o povo não o escolher a ele, só lhe resta, na melhor das hipóteses, voltar a ser secretário de chefe de suco.

Apesar da diversidade de Timor Loro Sae, Limea Craik é um bom exemplo das idiossincrasias da organização territorial e dos receios que assaltam o povo em geral. As pessoas estão habituadas às adversidades do clima e à aspereza do relevo, mas não é por isso que a localidade vive menos isolada. A fraca nutrição e as péssimas condições sanitárias contribuem para a propagação das infecções de pele, da malária e do dengue, estas últimas responsáveis por muitas das mortes na região, como confirmava o despiste feito durante as consultas.

 
Os homens passam geralmente à frente das mulheres e crianças na maneira pouco ordenada mas ordeira de se fazer atender pelos médicos
 
À semelhança do que foi acordado com outras ONG e como estava previsto desde que chegou, há dois anos, a Timor, a AMI retirou-se do distrito de Ermera mantendo a clínica e o centro de apoio a refugiados oriundos de Timor Ocidental, em Díli. Com a gestão dos centros de saúde a depender, desde 30 de Setembro, das administrações locais, a clínica móvel da AMI cessou funções. Apesar do investimento na formação dos quadros técnicos que substituem os disponibilizados pelas ONG nos treze distritos do país, não é de um dia para o outro que os cuidados médicos passarão a chegar a todos os timorenses. Como acontecerá a partir de agora em muitas outras localidades, os habitantes doentes de Limea Craik e de Atsabe terão de percorrer as montanhas no sentido inverso.

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A despistagem da malária confirma os números - continua a ser uma das principais causas de morte, em especial entre as populações rurais
 
 
Os habitantes do suco aguardam, de cócoras, no chão e à sombra da grande árvore. O dia avança sempre quente até desaparecer o Sol
 



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