Timor-Leste prepara-se para eleger uma assembleia
constituinte sem saber o que é uma Constituição. Os partidos estão
baralhados e Xanana Gusmão desdobra-se em explicações para provar
que ainda não é hora de votar nele. A situação é tensa e os
incidentes violentos tiveram manipulação política. E a fronteira
está longe de ser estável. Timor vive «um virar de página», como
afirma Xanana em entrevista à VISÃO
Henrique Botequilha, enviado especial / VISÃO nº 430
7 Jun. 2001
Reina uma grande confusão entre a maioria dos participantes numa
reunião realizada na sede da administração do distrito de Baucau. À
volta da mesa, num enorme salão de um antigo edifício público
indonésio que escapou à destruição, estão Marito Reis, 55 anos,
administrador do distrito, o vice-administrador, um sueco de porte
imponente que contrasta com o seu superior timorense, militares da
força de paz da ONU, polícias internacionais, representantes das
forças políticas e «frustrados da situação». A classificação é de
Marito Reis, referindo-se àqueles que, «após uma luta armada, pensam
ter direito a um cargo e se sentem marginalizados porque não há
cadeiras para todos». Na reunião, está também L7, um ex-membro das
Falintil. Ninguém sabe o seu nome verdadeiro. Chegou mais tarde e
vem fardado com o camuflado e bóina da guerrilha. E não abrirá a
boca durante o encontro.
Primeira dúvida: para que serve uma Constituição? O pessoal
internacional explica, vagamente, que se trata de uma lei
fundamental, e que todas as outras leis irão nascer a partir dela. A
resposta não satisfaz a audiência e um dos representantes do povo
endurece o discurso: «Timor não precisa de uma Constituição para
nada, precisamos é de leis», defende, de forma exuberante.
Outro dirá que já que existe um Conselho Nacional, este que faça
a Constituição: «Para quê eleições e confusão?» As justificações são
demoradas. Tanto os administradores de distrito, como os soldados e
polícias internacionais tentam explicar pacientemente como funciona
o processo: eleições em 30 de Agosto, para um parlamento de 88
pessoas, legitimadas para desenhar e aprovar uma Constituição até ao
fim do ano, abrindo caminho à independência no fim do ano ou início
de 2002. As leis virão com o futuro parlamento.
As dúvidas dos líderes continuam entretanto a desfilar sobre a
mesa e reflectem as interrogações da população: «As pessoas não
sabem... não sabem nada», desaba João de Deus Batista, chefe da
comissão de acompanhamento da Situação Política do CNRT, em Baucau.
«Se a UNTAET, CNRT e a Igreja não forem ao terreno ninguém vai
perceber nada.» Há alguém mandatado para colocar uma simples
pergunta: «Um velho de pé estragado, olho estragado, como é que
vota? E as pessoas das aldeias onde não se passa de carro nem a
cavalo?». Esta, porém, era fácil: «A UNTAET tem veículos e
helicópteros para fazer face a esses casos», esclarece o pessoal
internacional.
Terminada a reunião, dispersados os participantes, João
Fernandes, 37 anos, um timorense de Díli, sem funções políticas nem
representativas, que o acaso levara ao local, saiu dali com a mesma
certeza com que havia entrado: «As eleições são para votar em Xanana
para Presidente.»
"A presidência é dele"
Mas Xanana Gusmão continua a dizer não à presidência de
Timor-Leste, embora as eleições constituintes que se avizinham não
tenham nada a ver com a presidência. O ex-líder do Conselho Nacional
da Resistência Timorense (CNRT), a coligação dos partidos de
resistência que vai ser extinta em 9 deste mês de Junho, não tem
dúvidas e afirma à VISÃO: «É hora de dar uma oportunidade a outro.
Foi isso que fizemos quando ficámos reduzidos a 400 guerrilheiros,
durante a invasão indonésia, e é isso que temos de continuar a fazer
para não perder capacidade de dinâmica e de progredir.» Mas Xanana é
a única pessoa que acha que não vai ser Presidente da República. De
resto, ninguém acredita, começar pela elite política timorense e
anterior hierarquia do CNRT, cujos dois ex-vice-presidentes não
levam a sério os desejos do seu líder e continuam a apontá-lo para
os comandos do novo país. «Ele não tem outra solução senão aceitar a
presidência e julgo que fará essa declaração muito em breve»,
adianta Ramos-Horta. «Só por milagre entrarei num executivo que não
tenha Xanana à frente», frisa por sua vez Mário Carrascalão.
Com o fim do CNRT, iniciou-se a política partidária e a maioria
dos 13 movimentos políticos que se estão a registar para as eleições
Constituintes, marcadas para 30 de Agosto, diz que o seu preferido
para ocupar a presidência é Xanana Gusmão, incluindo a poderosa
Fretilin. «Não tenho dúvidas, é o nosso candidato», anuncia Mari
Alkatiri, vice-coordenador deste partido histórico.
E aqueles que lamentaram e criticaram a demissão de Xanana do
Conselho Nacional entendem agora que essa foi a decisão certa. «Ele
era um subalterno da administração da ONU naquele Conselho sem
qualquer poder. O seu papel é outro», diz Mário Carrascalão,
referindo-se aos poucos poderes da assembleia timorense, criada pela
UNTAET, cujas deliberações não são vinculativas. «Estou de acordo
que o Conselho Nacional não é o seu lugar», adianta Ramos-Horta, que
chegou a ser candidato para substituir Xanana e que acabou por
retirar a sua candidatura em favor de Manuel Carrascalão.
Longe do complexo nó que é a política timorense, a população
continua a elevar Xanana à condição de herói da libertação. Em Díli
e em qualquer localidade do território, mantêm-se as frases de apoio
nas paredes e não se vê nenhuma contra. Dentro das casas, é
frequente encontrar-se, ao lado de um quadro com uma cena religiosa,
um retrato do líder da Resistência, vestido com o seu tradicional
camuflado ou, na versão moderna, de fato e gravata.
Numa altura em que os timorenses se preparam para eleger os 88
deputados da futura Assembleia Constituinte, muitos estão
convencidos que chegou a hora de votar em Xanana. «Alguns até dizem
que se a cara dele não aparecer no boletim de voto, nem vão votar»,
revela o administrador apostólico de Baucau, D. Basílio do
Nascimento.
A ignorância da população sobre o processo democrático que se
avizinha não deverá ser menosprezada pela UNTAET e pela liderança
timorense. Segundo uma sondagem realizada no final de Março pela
Asia Foundation, apenas 5% dos 1 600 inquiridos sabem qual a razão
das próximas eleições e somente 30% conhecem a data do sufrágio.
Trinta e sete por cento desconhecem o que é a democracia e ninguém
citou as eleições como uma situação importante do processo
democrático.
Não há mães solteiras
A falta de esclarecimento da população relegou outra dúvida
importante para segundo plano: conseguirá a UNTAET registar toda a
gente a tempo das eleições? Até finais de Maio, ainda só estava
registada metade das pessoas, num processo que se destina não só ao
censo da população como ao recenseamento eleitoral, e que terá de
ficar concluído até 20 de Junho.
Há um mês, nos postos distribuídos pelos 13 distritos do
território reinava, apesar de tudo, a tranquilidade. Em Same, no sul
do país, Gary Echerer, 55 anos, um americano da Florida que se
ofereceu como voluntário para Timor a fim de «pagar a vida
confortável» que tem tido, confia que o processo irá correr bem e
que no próximo dia 20 toda a gente estará devidamente inscrita nos
cadernos eleitorais. «Sinto que, aqui, um homem da minha idade tem
mais motivos para votar do que eu. Para mim, é fácil: Gore ou Bush?
Não há grande entusiasmo, pois não? Aqui, o voto faz a diferença.»
É isso que procura explicar aos milhares de timorenses que têm de
se deslocar à sede do distrito de Manufahi a fim de se registarem.
Chegam dos pontos mais remotos da montanha, depois de andarem um dia
inteiro a pé para cumprir o seu objectivo. No posto, poderão ver um
filme sobre a utilidade do voto e para que serve a Constituição,
mas, em Same, ninguém estava em frente da televisão. À saída, é
oferecida uma brochura, em tétum, bahasa e português (cheio de
erros) com informação elementar sobre as eleições. Só que 34% dos
timorenses não sabem ler.
Os funcionários da UNTAET, esforçam-se para fazer o seu trabalho
depressa e bem, mas são múltiplos os problemas que têm de enfrentar,
a começar pelos terminais de computador que passam a vida a ir
abaixo por causa do calor e da humidade. Em alguns locais, o registo
esteve mesmo parado durante alguns dias, porque as máquinas não
funcionavam.
Outra situação frequente tem a ver com a idade da pessoa que se
vai registar, desconhecida em muitos casos. Frangelino Lekehono
Soares, por exemplo, habitante de uma aldeia longínqua na região de
Laclubar, sabe que tem 29 anos mas ignora a idade dos seus quatro
filhos. Mas, segundo um funcionário internacional da UNTAET no leste
do país, os registos revelam outros dados curiosos: «Não há mães
solteiras nem divorciados em Timor-Leste, mesmo que os casais
estejam separados.» Para não falar no caos dos nomes atribuídos às
crianças. Um exemplo: o pai chama-se Luís Martins Pires, a mãe,
Natalina de Jesus Guterres. O nome do filho é José Tilman
Ximenes.
Comunicações alternativas
Neste processo de registo, não faltam as críticas habituais da
liderança timorense à lentidão da UNTAET. Até Xanana Gusmão, que
tantas vezes tem defendido o papel da ONU no território, acha que
«se perdeu muito tempo até que se chegasse à conclusão de que o CNRT
poderia ajudar a registar e a esclarecer as pessoas».
Gary Echerer continua espantado com a velocidade com que a
informação corre em Timor. «Se quero que uma mensagem chegue a um
local que fica a oito horas, a pé, de distância, e que não tem
telefones nem rádio, tenho a resposta no mesmo dia. Não sei como
funciona, mas resulta.» O atraso no envolvimento dos chefes de suco
(freguesia) e dos liurais (autoridades tradicionais), que, por sua
vez, poderiam esclarecer a população, também merece reparos da
liderança timorense: «A ONU não utiliza os canais de informação que
estão ao seu alcance. No tempo dos portugueses, bastava afixar um
papel nos bazares (mercados) para passar palavra», recorda Mário
Carrascalão. A rádio não chega a todo o território, a televisão não
tem programação própria para Timor (só exibe programas da RTPi, BBC
e de um canal indonésio) e os jornais praticamente só são lidos em
Díli por uma minoria letrada que compreende o bahasa.
Os partidos políticos também se queixam que não lhes dão
condições para levar os seus programas à população. Há 25 anos, a
administração portuguesa subsidiou a UDT e a Fretilin para que estes
movimentos fizessem as suas campanhas. Leandro Isac recorda-se bem
dessa iniciativa e veria com bons olhos que a ONU fizesse o mesmo:
«Se eu quiser levar o meu programa a Lospalos, na ponta leste, como
é que vou? A pé? Esquecem-se que não temos dinheiro?», questiona o
actual vice-presidente do Partido Social Democrata, de Mário
Carrascalão. «Lutámos pela independência, liberdade e democracia,
que são condições do Banco Mundial e do FMI para ajudar o país. Mas
não há uma única iniciativa para desenvolver estes objectivos. É o
que eu chamo morrer de sede numa lagoa», adianta.
Os 25 anos que não existiram
Como se a confusão entre a população e os partidos não fosse já
suficiente, vai ganhando visibilidade o movimento CPD-RDTL (Comissão
Popular de Defesa da República Democrática de Timor-Leste), que
pretende arrepiar caminho e ter a independência de imediato, a mesma
que foi autoproclamada em 28 de Novembro de 1975 por Xavier do
Amaral, agora com 67 anos.
No dia 25 de Abril em Díli, a tensão política aumenta na
proporção da temperatura. Há uma semana que cerca de duas mil
pessoas estão concentradas à porta da residência do «Presidente», na
marginal de Díli. A maioria enfrentara um dia inteiro de viagem nas
caixas abertas dos camiões. Vêm vestidos com trajes tradicionais e
assumem uma postura bélica, com as suas facas e catanas. Os grupos
de distrito marcham, à vez, em redor da bandeira da independência e
saúdam Xavier do Amaral, que está sentado, em pose de estadista, à
sombra do alpendre da sua casa. Do outro lado da avenida, a multidão
levanta pó com as suas danças, numa festa que dura há sete dias, bem
regada com tuaca (vinho de fruto de palmeira). Dali, partem todos
para uma manifestação no palácio do governador, actual sede da ONU
em Timor.
Na ausência do chefe da UNTAET, o brasileiro Sérgio Vieira de
Mello, é Christien Cady, o número dois da administração, que recebe
Xavier do Amaral. As exigências não são pequenas: reconhecimento
imediato da independência de 1975, bem como da Constituição aprovada
nesse ano, da bandeira (praticamente igual à da Fretilin) e hino
nacional e das forças armadas (Falintil), dos «líderes reais do
povo», Xavier do Amaral e Rogério Lobato, a eliminação do CNRT e do
Conselho Nacional. Os organizadores reclamam ter a assinatura de 20
mil apoiantes, embora na praça esteja um número dez vezes menor.
São suficientes entretanto para atear o alerta vermelho das
autoridades: à porta do palácio, há apenas um curto cordão policial;
mas, no interior, a Unidade de Intervenção Rápida da GNR está pronta
para o que der e vier. O seu comandante, major Rodrigues, dirá mais
tarde à VISÃO que chegou a temer o recurso à força, sobretudo no
momento em que Xavier do Amaral saiu do edifício, obviamente sem as
suas exigências satisfeitas, voltando a pedir respostas imediatas a
Cady. Nessa altura, percebeu-se que quem mandava ali era a pequena
multidão e não o seu líder, afinal um mero porta-voz de quem queria
sair dali com a independência no bolso.
Porém, como tudo o que se anuncia em Timor não acontece, a
manifestação dispersou espontaneamente e cada um regressou ao seu
distrito com a promessa de um dia voltar. Na praça, ficou apenas um
chão vermelho. Parecia sangue, mas não era mais do que o cuspo
vermelho da bua, uma mistura de fruto de palmeira com cal que os
habitantes do interior mascam até queimar as gengivas.
A revolta dos Macacos Mágicos
Ainda que os seus líderes o desmintam, membros do CPD- RDTL
estiveram envolvidos nas cenas de violência mais extrema que
aconteceram no território desde o referendo. Em Baucau, uma
discussão entre um bêbado e o condutor de um autocarro acabou com o
incêndio da mesquita da cidade, a destruição do carro do
administrador (que conseguiu fugir sem ser atacado) e o cerco à
unidade da polícia jordana. No mesmo dia, 7 de Março, a vida de
Xanana Gusmão terá sido ameaçada durante um fórum político no
Ginásio de Díli. Três pessoas do CPD-RDTL foram presas. Aliás, a sua
libertação incondicional foi outra exigência que Xavier do Amaral
levou a Christien Cady. Tal como as outras, não foi satisfeita.
Em Viqueque, no sudeste do território, uma rivalidade entre dois
grupos de jovens levou à morte de duas pessoas e ao incêndio de 40
residências. Nem as milícias e os indonésios provocaram tantos
estragos naquela cidade. A história está relacionada com a
proliferação de grupos de jovens praticantes de artes marciais (uma
herança indonésia) e precipita-se a partir do momento em que um dos
90 membros dos Persandaran Setia Hati Terate (Nenúfar à Tona da
Água) foi ameaçado pelos rivais Kera Sakti (Macacos Mágicos). A
provocação foi crescendo até haver uma linha de fronteira, em que
dezenas de membros estavam prontos a atacar, mal o seu espaço fosse
violado. «A polícia e os militares não fizeram nada, até me disseram
que as armas eram para sua auto-defesa e que só reagiam quando
houvesse mortos», recorda o padre Adelino, pároco de Viqueque,
testemunha dos acontecimentos e que só não foi morto porque
conseguiu vestir a batina a tempo.
Durante a noite, elementos dos Nenúfares de Baucau foram reforçar
os seus companheiros de Viqueque. Quando chegaram, mataram um rapaz
que nem era Macaco Mágico. Para aumentar a tensão, o jovem era da
etnia maksay e foi abatido à catanada por tetun-teriks. A vingança
acabaria por ser ordenada pelo liurai da aldeia da vítima e seria
comandada por um tal Guido. Um bairro inteiro de Viqueque foi
arrasado e mais um homem, que recusou sair para o mato como fez toda
a população, foi morto - esquartejado na sua própria casa.
Embora não pareça, todos estes incidentes «tiveram motivação
política», garante o comandante da polícia de Timor, Costa e Sousa.
«Não estou a ver reacções espontâneas de pessoas equipadas com
rádios portáteis a receber ordens à distância, como aconteceu em
Baucau e Viqueque.» Ramos-Horta vai mais longe e acusa a CPD-RDTL de
ser «a quinta coluna da linha dura indonésia».
Pacto de não agressão
A UNTAET acaba por ter dificuldades de lidar com a RDTL porque o
movimento não é um partido político, embora seja apoiado pelo PNT
(Partido Nacionalista de Timor, de Abílio Araújo) e pela ASDT
(Associação Social Democrata de Timor, criada em 1974, embrionária
da Fretilin, e agora recuperada por Xaviar do Amaral).
A Fretilin «oficial» queixa-se de que todos estes movimentos usam
abusivamente os seus símbolos e querem lançar confusão na cabeça das
pessoas do povo. «Uma das razões para termos abandonado o CNRT, foi
essa - a possibilidade de voltar a usar a nossa bandeira», declara
Mari Alkatiri, que garante ter 200 mil militantes inscritos na
Fretilin, que é como quem diz já ganhei. Este discurso está, aliás,
a ser criticado pelos restantes políticos timorenses.
Claro que Alkatiri não pode garantir vitória nenhuma antes das
eleições, mas a sua promessa de que os apoiantes do seu partido não
vão cometer desacatos será levada em conta pelas autoridades. Um
outro militante da Fretilin diz até que, se a cadeia de comando do
partido não funcionasse, «Xavier do Amaral já estava pendurado pelos
pés, como alguns queriam fazer».
Para que ninguém fique pendurado pelos pés, Xanana Gusmão
pretende propor um «pacto de não agressão», a ser assinado pelos
partidos concorrentes à Assembleia Constituinte, uma medida
preventiva para que os timorenses não caiam na tentação tradicional
de confundir debate político com ofensas pessoais e pancadaria.
A opinião generalizada do pessoal internacional ouvido pela VISÃO
é de que vai haver violência no processo eleitoral, só não se
sabendo quando nem em que escala. Ramos-Horta acha, por seu lado,
que a tensão vai subir até 30 de Agosto. «Mas acredito que seja
possível evitar a violência interpartidária.» Os líderes políticos
timorenses estão aliás confiantes de que toda a gente tirou as
lições do passado e que está na hora do país ter paz, apesar de a
prática dos seus militantes não confirmar este desejo.
Muitos soldados, poucos polícias
Para controlar os ânimos mais excitados durante o período
eleitoral, existem 1 451 polícias no território, menos 200 do que o
programado. O comandante deste contingente, Costa e Sousa, acha-o
«curto» - uma média de um polícia por 800 habitantes, quando, no
tempo indonésio, ela era de um por 200. Neste momento, estão a ser
formados três mil agentes timorenses, que, dentro de um ano,
assumirão o controlo total da segurança no território.
Dada a escassez de efectivos nas ruas, os nove mil soldados
distribuídos pelas províncias acabam por fazer, também eles,
trabalho policial, como aconteceu há pouco tempo com elementos do
batalhão português, em Alas, chamados para pôr fim a uma guerra
entre aldeias por causa do regresso de um ex-elemento das milícias.
Do ponto de vista militar, a ameaça à segurança de Timor é
considerada «baixa» em todo o lado, excepto na região de fronteira,
controlada por efectivos australianos e neozelandeses. Em 29 de
Maio, cinco pessoas morreram e 40 ficaram feridas em consequência de
um ataque com granadas e metralhadoras a um mercado ilegal, junto à
localidade fronteiriça de Balibó. As autoridades da ONU decidiram
isolar a área até que os motivos do ataque sejam esclarecidos.
Até então, o número de incidentes na fronteira era curto. Fontes
da força de paz consideravam mesmo excessivo o número de militares
em Timor e estranhavam a coincidência de os confrontos surgirem
sempre que se noticiava a redução do contingente australiano (o
maior, com 1 600 elementos). «Tenho dúvidas de que alguns desses
confrontos tenham mesmo acontecido. Onde estão os mortos, os feridos
e os prisioneiros?» Até o brigadeiro general das futuras forças
armadas timorenses, Taur Matan Ruak, não via ameaças que
justificassem nove mil soldados em Timor.
No entanto, todos sabem que a estabilidade no território depende
em larga medida do que se passa do outro lado da fronteira, na
Indonésia. O presidente «Gus Dur» Wahid enfrenta uma provável
destituição e ninguém consegue prever o que vai acontecer no
colossal arquipélago. Teme-se, por exemplo, que o processo
democrático seja travado e o regresso da influência da linha dura
militar nos círculos políticos de Jacarta. «O processo em Timor
correrá bem dependendo do que a Indonésia pode fazer para miná-lo»,
resume Mari Alkatiri.
No lado ocidental da ilha está ainda um número indeterminado de
refugiados. A UNTAET insiste que há mais de cem mil nos campos de
Atambua e de Kupang, apesar de a liderança timorense acreditar que
sejam agora bastante menos. Leandro Isac não compreende «como foi
possível os TNI (militares indonésios) levarem 200 mil pessoas em
três semanas apenas e a ONU continuar a dizer, ao fim de um ano e
meio, que metade está ainda do outro lado». O Alto Comissariado da
ONU para os Refugiados, garante Felicidade Guterres, uma timorense
de 39 anos, que é coordenadora de programas do Banco Mundial,
«recebe uma fortuna e todos os dias regressam pessoas a Timor-Leste.
Como é possível que sejam ainda cem mil?». A mesma fonte conta que
muitos deles «vêm com arroz e materiais de construção para vender em
Díli e, a seguir, regressam à sua condição de refugiados. A UNTAET
acaba por gastar mais dinheiro com eles do que com os timorenses que
estão aqui», acusa.
Do lado leste, mantém-se a tensão. Em Quelicai, distrito de
Baucau, a violência voltou a andar à solta, em 20 de Maio, após uma
rixa ente dois grupos de jovens. Resultado: 20 casas destruídas e
três feridos. Os confrontos duraram o fim-de-semana inteiro e
envolveram aldeias vizinhas. A possibilidade de haver mão política
que tenha entrado em determinado momento do crescendo de violência
nunca pode ser descurada. E a facilidade com que incidentes menores
evoluem para autênticas batalhas relançam sempre a dúvida sobre a
paz num futuro próximo em Timor.