O cacifo das saídas

Atrasos na marcação de julgamentos e nas sentenças são as queixas mais recorrentes entre as que dão entrada no gabinete da Provedoria de Justiça. Das quase 300 queixas recebidas este ano por Nascimento Rodrigues relativas à actuação dos tribunais, 70% – ou seja, 181 – são relativas à morosidade do sistema.

Diário de Notícias de hoje

E então, porque sucederá semelhante coisa? Hum? Algum palpite? Olha que realmente! Mas porque será? O que fazer, hem?

Bom, encurtemos as perplexidades e boicotemos as exclamações de incredulidade. Não existe nisto, como na maior parte dos fenómenos relacionados com o reumático nacional, absolutamente mistério algum. Aliás, isto é daquelas coisas que não têm nada que saber: o problema é o funcionário. Sim, aqueles aos quais dantes – quando ainda não era arriscado abrir a boca para dizer alguma coisa – se chamavam coisas hoje em dia tão estranhas como “escriturário”, ou “arquivista”, ou “dactilógrafa”, ou “contínuo”. É isso aí. Os processos não andam na Justiça, como nada anda na administração pública em geral, porque todos esses funcionários ditos “menores” carregam consigo uma longa e sobrepujante tradição de não fazer nenhum, se quisermos utilizar uma expressão perceptível. Ora, há que ser compreensivo (e compassivo), se é certo que ninguém pode fazer seja o que for depressa e bem, também devemos compreender que as coisas se tornam ainda mais difíceis quando as pessoas carregam aos ombros o peso enorme da tradição. Assim não dá.

Se alguém se atrevesse a espiolhar aquilo que se passa nas repartições públicas do Portugal profundo (e do sem ser profundo também, é claro), facilmente compreenderia a mecânica obsoleta e a lógica maquiavélica do verdadeiro funcionalismo – e não apenas daquele que vulgarmente se designa como “público”. O “português no escritório”, essa variante maioritária do nosso povo, mereceria por certo algum estudo e acompanhamento, mas isso ultrapassa largamente as capacidades e disponibilidades actuais do autor destas linhas; autor esse que teve, aliás, durante quase duas décadas, de gramar com toda a sorte de truques e tropelias da dita variante, e que teve, por conseguinte, muito tempo, demasiado tempo, para aprender como é e como (não) funciona qualquer tipo de actividade burocrática em Portugal.

Os processos na Justiça não avançam – como praticamente nada avança neste país, pelo menos desde que Miguel de Vasconcelos avançou pela janela fora, excelente progresso que faz 367 anos no próximo dia 1 – porque nenhum funcionário pode substituir outro, dê lá por onde der. E muito menos pode um serviço providenciar o expediente de outro que esteja temporariamente impedido. Ou seja, por exemplo, se alguém estiver de baixa, em qualquer dos pontos de tramitação de um processo (serviço, departamento, secção, repartição), a papelada fica ali mesmo, sem ninguém poder sequer tocar-lhe ou mudá-la de lugar, enquanto o “baixista” não regressar. Nenhum processo pode sequer ser transportado por outrem que não a ou as pessoas a quem essa tarefa é atribuída em exclusivo, geralmente aqueles que dantes se chamavam “contínuos” e agora se devem chamar “técnicos auxiliares de mobilidade administrativa”, ou patacoada que o valha; se, por qualquer razão, o “titular” dessa tarefa não estiver presente, a papelada fica onde está até que ele regresse ao “seu” posto. Se for necessário um simples carimbo, ainda por exemplo, e se isso for atribuição de alguém que não se encontra, ou porque está de férias ou porque lhe deu uma qualquer travadinha, a coisa pára ali sem apelo nem agravo; e quem diz um carimbo diz uma capa, um impresso, um formulário específico; se for necessário registar um processo (e é sempre necessário registar os processos, folha a folha, calhamaço a calhamaço, montes de vezes) e se ao “fulano dos registos” tiver morrido a avó, ou se lhe tiver nascido um filho, ou se mais prosaicamente lhe tiver dado de repente um qualquer desarranjo intestinal, há que esperar, até que a vaca tussa se preciso for, ou que se extinga o justíssimo período de nojo, ou que rebentem os dentinhos a seu rebento, ou que a coisa se componha por fim com umas doses de laxante, ou assim.

Tive em tempos um colega cuja função consistia em passar papéis do cacifo das “entradas”, que ficava do lado esquerdo da sua secretária, para o cacifo das “saídas”, no lado oposto. As papeladas para “despachar” aterravam-lhe no cacifo da esquerda e o que ele fazia era ir passando aquela porcaria toda, a pouco e pouco e processo por processo, para o cacifo da direita. No meio do “procedimento”, é claro, havia que ter o cuidado de deixar passar o tempo suficiente para que os documentos ficassem suficientemente amarelos e de preferência com algum desgaste devido a manuseamento – actividade em que se entretinha por vezes, enquanto não batiam as seis da tarde, conscienciosamente folheando aquelas coisinhas, com uma ruga de compenetração na testa. Aliás, mesmo este resquício de actividade não era sempre, era só às vezes, quando por acaso regressava mais cedo do que o costume das suas voltinhas diárias por Lisboa e arredores. O dia de “trabalho” daquela alminha, verdadeiro paradigma do “empregado de escritório” português, consistia nisto: entrava religiosamente às nove da manhã, picava o ponto e, depois do pequeno-almoço no refeitório da empresa, ia dar uma volta por todos os departamentos e secções de todos os cinco andares, a cumprimentar toda a gente; cumprido estes dois deveres, o social e o estomacal, acercava-se do seu “posto de trabalho” (o seu “ganha-pão”, como carinhosamente lhe chamava), puxava da cadeira e entretinha-se durante uns minutos a desarrumar as suas coisinhas: misturava e empilhava os “dossiers” e despejava umas canetas e uns clips, tudo no tampo da secretária, em tremenda e terrivelmente ocupada confusão; por fim, tirava o casaco (usava um outro mais ligeiro por dentro, de malha), colocava-o muito direitinho nas costas da cadeira e pronto, saía à francesa, porta fora, a gozar seus passeios higiénicos pela Capital. Raramente ia ao cinema ou às compras, só uma vez ou outra foi visto em centros comerciais ou nos cafés da Baixa, pelo que se presume tratar-se de um verdadeiro lisboeta, interessado e apaixonado pelas belezas naturais da sua cidade. Enfim, em resumo, terminemos o quadro humano: costumava regressar ao “ganha-pão” por volta do chá das cinco, o que dava perfeitamente para a voltinha de cumprimentos, pela ordem inversa da matinal, então até amanhã, cumprimentos lá em casa; depois de arrumar de novo toda a sua atarefadíssima secretária, aproveitando para passar um ou dois dos processos mais antigos para o cacifo das saídas, bom, mais um dia se passou, picava o cartão-de-ponto e lá ia à sua vidinha, muito satisfeito.

Foi sucessivamente promovido, automaticamente por antiguidade e excepcionalmente pelo facto indesmentível de quase nunca faltar. Ao fim de 25 anos de “casa” lá recebeu, numa cerimónia “muito bonita”, a respectiva medalhinha e ainda um belíssimo relógio comemorativo, como é de tradição, que celebra e testemunha a dedicação de tão exemplar servidor público.

Claro que este foi apenas um dos muitos cromos que fui conhecendo ao longo desses anos em que fui “funcionário”. Um só cromo de uma gigantesca e diversificada colecção, e este serve apenas de amostra. Conheci muitos outros que igualmente… só visto. Mas nada de especial, note-se. Isto não é excepção, é regra: Portugal rege-se segundo o “princípio de Peter“, essa muito chunga máxima que deve ter sido cá inventada, ao contrário do que poderá parecer. Não existe qualquer espécie de espírito de competição, no nosso país, a não ser pela negativa: o funcionário é apreciado e promovido consoante as capacidades que demonstrar em fazer o mínimo indispensável no máximo de tempo possível. Apreciadas são também outras não despiciendas qualidades, como a habilidade para bajular as hierarquias e a destreza em espezinhar os subordinados, em sendo ele próprio chefinho; e, principalmente, aquilo que o funcionário mais pode fazer por si próprio, para safar o próprio coiro e para ajudar à causa do progresso, é aquilo a que se convencionou chamar “não fazer ondas”, isto é, perpetuar o sistema de incompetência partilhada e fomentar a inutilidade de processos, a redundância de métodos, a multiplicação exponencial de necessidades improdutivas e de cargos desnecessários. O que significa, evidentemente, que tudo aquilo que seja ou vagamente se pareça com trabalhar está por definição muito mal cotado, sendo nisso mesmo, em suma, que consiste o conceito de “fazer ondas”.

Somos assim, nós, ou, pelo menos, alguns (muitos) de nós: especialistas em não fazer nada, actividade para a qual já todos os instrumentos foram engendrados, com made in Portugal gravado, adoramos desfazer as ditas ondas – de preferência com umas pranchas de surf – mas detestamos solenemente quem se atreva a fazê-las, ou seja, a mexer uma palha. Trabalhar equivale portanto, nesta lógica há séculos inscrita no nosso código genético, simplesmente, a tirar o emprego a alguém ou, no mínino, a pôr em causa o “posto de trabalho” de quem não fez algo e deveria ter feito; demonstrar dedicação não ao emprego mas ao trabalho é considerado no nosso país como uma bizarria, um capricho inadmissível e, ainda por cima, perigoso; apresentar serviço põe em relevo, expõe, compromete os colegas do mesmo ofício, por exclusão de partes, pois esse serviço é de todos e não é para ser feito… é para se ir fazendo, em sendo possível. O “português no escritório” sabe perfeitamente que 99,9% daquilo que faz, quando faz e se faz, é absolutamente irrelevante e serve não apenas para justificar o próprio emprego como aqueles que a multiplicação absurda de métodos e processos poderá vir a justificar, ciclicamente; os serviços administrativos portugueses servem-se apenas a si mesmos, e apenas residualmente têm alguma verdadeira utilidade; o infindável labirinto burocrático gera os mesmos 99,9% de circuitos, registos, impressos, fichas, arquivos que se geram, gerem e controlam entre si, em circuito completamente fechado. Ora, assim sendo, como e para quê há-de alguém ralar-se com o andamento seja do que for, se o sistema é criado precisamente à medida de uma inércia e de uma inoperacionalidade inatacáveis?

Enquadrando-se nesta mecânica esmagadora, surge a questão das recompensas… que não existem, é bom de ver. Em Portugal, recompensa-se a competência, a dedicação, o profissionalismo, exclusivamente com mais trabalho ainda. Esta estratégia mental, mesquinha, medíocre, imbecil, é inabalável e perpétua. Tentemos, com as ferramentas que a escrita permite, imaginar o que se passa na cabecinha de um qualquer dos milhares de chefinhos tugas que por aí existem, sempre que topa com alguém que gosta de trabalhar (uma anomalia muitíssimo rara, entre os lusitanos).

«_ Mas quem é que este gajo julga que é? Ai gostas de trabalhar, é? Então toma lá mais, desenrasca-te, sempre quero ver quando é que amochas, ó grandessíssimo peneirento. Tens a mania de que és bom, mas vais ver, espeto-te com uns trabalhinhos que nem te passam pela cabeça, do mais inútil e impossível que me ocorrer, e eu sou bom a ocorrerem-me coisas dessas, qualquer dia andas por aí mansinho que nem uma mosca, ouviste, ó morcão? Olha, toma lá mais isto, e isto, e isto. Hmm? Gostastes? Ou ainda queres mais?»

Bom, deixemos lá o chefinho a sós com os seus pensamentos nacionalistas, até porque isto de autópsias mentais não é coisa para qualquer estômago.

Todo este arrazoado para defender uma tese, e afinal apenas voltamos à questão inicial: mas porque será, realmente, que a Justiça é assim tão morosa, em Portugal?

Será que mais uns quantos milhares de funcionários não poderiam dar uma ajuda?

Isto é: será por isso e para isso mesmo que a questão agora aparece, como sucede de vez em quando? Será só para meter lá mais uns quantos milhares de inúteis trabalhadores?