E o que é a verdade?

Uma carta fora do baralho
Rosa Coutinho a incentivar o MPLA contra os brancos?
António Barreto «lamenta ter incomodado» o almirante
POR PEDRO VIEIRA

Subscrita por «António Alva Rosa Coutinho, vice-almirante», há uma carta de 22 de Outubro de 1974, ao «Camarada Agostinho Neto», multiplicada em cópias, transcrita em livros, presente na blogosfera, que as ondas do tempo foram levando e trazendo como destroços da história post-25 de Abril. Mas foi uma crónica de António Barreto, no jornal Público do último dia 13, a relançar a polémica sobre as palavras aterrorizadoras postas na pena de Rosa Coutinho, presidente da Junta Governativa de Angola, de 24 de Julho de 1974 até 28 de Janeiro de 1975. Engenheiro hidrográfico, o almirante, agora com 82 anos, mostrou-se chocado com a referência do cronista à missiva: «É incrível como um indivíduo culto, com a categoria do António Barreto, vai buscar uma carta falsa publicada em 1975 pelo Século de Joanesburgo, um jornal que era pelo “apartheid”, disse à VISÃO, na sua casa do bairro de Alvalade, onde peças de arte africana testemunham os lugares por onde passou a sua carreira. Não é caso para menos, tendo em conta o teor da carta transcrito pelo articulista: «Camarada Agostinho Neto, dá instruções secretas aos militantes do MPLA para aterrorizarem por todos os meios os brancos, matando, pilhando, incendiando, a fim de provocar a sua debandada de Angola. Sede cruéis sobretudo com as crianças, as mulheres e os velhos para desanimar os mais corajosos.»

Se tivesse lido “Holocausto em Angola – Memórias de entre o cárcere e o cemitério“, de Américo Cardoso Botelho, editado pela Nova Vega, talvez o almirante – «nem sequer sabia do livro» – tivesse sido mais compreensivo para o cronista do Público. Em resposta a um pedido da VISÃO, António Barreto lamenta mas explica a sua referência à missiva:
«Se a carta é falsa, como afirma o senhor almirante, lamento tê-la utilizado para apoiar um argumento ou para sobre ela tecer considerações. Tendo sido publicada em livro (não só uma transcrição, mas também um fac-símíle), em Portugal, há alguns meses, sem reacções conhecidas, considerei que a sua autenticidade não tinha sido posta em causa. Talvez o autor do livro Holocausto em Angola saiba mais sobre a origem deste documento. É também possível que o jornalista Ferreira Fernandes conheça mais pormenores: ele diz, no Diário de Notícias, que viu a carta há 30 anos, na África do Sul, e que sabe porque é falsa. Lamento ter incomodado alguém, nomeadamente o senhor almirante Rosa Coutinho.»

Ferreira Fernandes, na sua coluna do último domingo, sob o título “Barreto e a carta falsa (II)”, espanta-se por não ter havido «um sobressalto nacional para tirar a coisa a limpo».

Não nos foi possível falar com o autor do livro Holocausto em Angola, mas o historiador angolano, Carlos Pacheco, disse à VISÃO: «Lembrei há dias ao eng.° Botelho, “eu alertei-o de que se tratava de uma carta forjada”.» E considera que «António Barreto andou mal por ter dado demasiada dimensão àquela carta».

Carlos Pacheco viu uma cópia da mesma «há muitos anos» na secção de reservados da Sociedade de Geografia. «Nunca lhe atribuí o mínimo de valor», diz, não a citando, por isso, nos seus livros.

Rosa Coutinho de há muito conhecia a carta «absurda» com o timbre da República Portuguesa / Estado de Angola e «com a minha assinatura muito bem imitada». Diz que «o MRPP andava a vendê-la por dez escudos no Rossio, antes do golpe do 25 de Novembro», e ele mandou comprar uma cópia.

Como autores da carta falsa, aponta «dois radialistas da Beira», Moçambique, desconhecendo, porém, a sua identidade e não sabendo quem lhe fez chegar essa informação.

Rosa Coutinho afasta com um encolher de ombros a hipótese de recorrer à via judicial para defender a sua honra face à carta que lhe é atribuída. «Não, era perder tempo.»

Em termos de reacções verificou-se um empate. O almirante recebeu um telefonema de solidariedade do coronel Leitão Fernandes e uma carta de um tal António Costa, enviada de Coimbra. Dentro do sobrescrito vinha uma cópia da tal carta com a seguinte ameaça: «Ao ver isto, tu, mulato e tua família, vão sangrar até à morte.»

No mesmo dia, por coincidência, recebeu ainda uma carta de uma norueguesa, estudiosa da história de Portugal e coleccionadora de fotografias de personalidades mundiais. Alimenta um arquivo como o tesouro que quer deixar aos seus filhos. Eva Eriksen pedia-lhe para assinar duas fotografias. Uma em que Rosa Coutinho está com Leonel Cardoso, Altino Magalhães, Silva Cardoso e José Emílio da Silva. E outra em que aparece com Agostinho Neto e Jonas Savimbi.

VISÃO n.º 790, 24 DE ABRIL DE 2008

Este é, por assim dizer, o desmentido oficial da veracidade da carta que aqui foi reproduzida no passado dia 18.

O próprio António Barreto, que foi quem “lançou a lebre”, retractou-se ontem no mesmo jornal em que tinha publicado o artigo “Angola é nossa!” e reproduziu no seu blog Sorumbático essa retractação, com pedido de desculpas à pessoa em causa. O que se segue é um excerto desse último artigo, na parte que a isto diz respeito.

Correcção: Há duas semanas, citei, nesta coluna, uma carta atribuída ao antigo Alto-comissário em Angola, Rosa Coutinho. Esse documento fora reproduzido em fac-símile num livro de Américo Botelho editado em Lisboa em 2007, “Holocausto em Angola”. Desde então, que eu soubesse, a sua autenticidade não tinha sido posta em causa. O Almirante Rosa Coutinho acaba de negar, na revista “Visão”, a autoria de tal carta. Lamento ter utilizado como argumento esse documento apócrifo. As minhas desculpas ao senhor Almirante e aos leitores.
«Retrato da Semana» – «Público» de 27 Abr 08

Já hoje, 2.ª Feira, na ressaca de um fim-de-semana prolongado e na expectativa de outro ainda maior, inúmeros comentadores amadores e alguns “opinion makers” (idem) decidiram atirar-se furiosamente às canelas de António Barreto, chamando-lhe de tudo, até mesmo de “cronista”, coitado, e utilizando palavras caríssimas para o efeito. Diz que, por conseguinte, se trata de uma carta “apócrifa” e parece que, portanto, na respeitável opinião de alguns dos tais, a coisa não deveria ter sido publicada, haja respeito, haja coerência, isto só lá vai com censura prévia, mas com outro nome, “crivo de verificação factual” ficava bem, ou assim. Provavelmente com as orelhas a arder, nosso pobre “cronista” arrisca-se agora a penas terríveis como, por exemplo, duplicarem-lhe em público o tratamento privado e passar ele a ser conhecido já não como Tó, simplesmente, mas como “Totó” Barreto. Ou isso ou coisa pior ainda. Ouve-se ao longe o ruído das facas a amolar e das mocas a afiar, que nestas coisas de lisura aquilo é gente que não perdoa, ou não fossem eles mesmos os magníficos inventores de uma coisa chamada “a verdade a que temos direito”, essa elegantérrima aplicação das “amplas liberdades” políticas ao âmbito jornalístico em geral e à opinião individual em particular.

Ter António Barreto tragado um barrete, ainda que este lhe tenha sido servido em letra de forma (um fac-símile que tresandava a manhoso), se não abona muito em favor da sua perspicácia também não deveria servir para lhe enfiar umas orelhas de burro, isto é, albardá-lo com o peso da suspeita, para descrédito geral. Desejar a canga da censura é algo que encaixa na perfeição no discurso e na praxis dos ditos paladinos das “amplas liberdades”, mas que se não aplica de todo a quem sempre defendeu a liberdade, tout court, como é o caso.

Deveria o “cronista” ter tido mais cuidado com aquilo que tomou por genuíno? Claro que sim. A questão residiria então em saber por onde pegar no assunto: numa perspectiva factual ou de um ponto de vista meramente documental? A validação do documento deveria ter sido feita segundo uma lógica política e histórica ou apenas detectivista ou, pior ainda, através de simples “palpite”?

Foi um erro, a publicação da carta? Talvez. Testemunhal, por exígua sustentação e à míngua de provas, certamente. Mas terá sido um erro político? Sinceramente, não me parece. Já era tempo de ao menos se discutir seriamente aquilo que se passou na primeira infância da chamada “Revolução dos Cravos”, e nomeadamente quanto às tragédias que sucederam e se sucederam na então África portuguesa.

Ora, e não é isso mesmo que estamos agora discutindo? Não é essa a função do “cronista”, suscitar dúvidas, levantar polémicas?

Tivesse António Barreto anotado no seu artigo o carácter duvidoso da carta, quanto a origem e autoria, e outro galo cantaria certamente; não estaria agora de forma alguma em causa quem falsificou a assinatura do remetente, que papel foi usado e qual era o envelope; porque daquilo que se trata é do que a carta diz e, principalmente, que o destinatário era um povo inteiro ao encontro da sua História.