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«Atrás dos tempos vêm tempos» [Ana Cristina Leonardo, “Público” 31.03.23]

Atrás dos tempos vêm tempos

Ana Cristina Leonardo

“Público”, 31.03.23

Se o mais provável; à medida que envelhecemos, é vermos aumentar o desajuste entre nós e mundo — escrevo provável, não inevitável — existem acontecimentos ou factos ou realidades que nos ilibam da acusação de “velhos do Restelo”, essa figura camoniana de um pessimismo “só de experiência feito”, talvez injustamente desamada.

Relembremos Billy Wilder, o homem que ao realizar Some Like it Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959) ou Avanti (Amor à Italiana, 1972) terá feito mais pela liberalização dos costumes do que os três longos dias de pândega em Woodstock.

Apesar disso, diria ele, cumpridos os seus setenta anos: “They say Wilder is out of touch with his times. Frankly, | regard it as a compliment. Who the hell wants to be in touch with these times?”

Mais perto de nós, infelizmente também morto, Leonard Cohen, embora sem se congratular por ter estado alguma vez em dessintonia com os tempos, nem por isso deixaria de cascar no movimento hippie seu contemporâneo, numa entrevista que deu ao crítico João Lisboa corria o ano de 1994: “Depois apareceram os hippies que não me interessaram, sobretudo quando começaram a poluir os rios e a deixar lixo por todo o lado, quando iam para o campo adorar Deus e a Natureza, Eram péssimos campistas. Eu fui escuteiro, logo, posso dizê-lo”.

É da circunstância de serem invariavelmente verberadores que se extrai a comicidade dos velhos Marretas, mas The Muppets show vivia precisamente do exagero, do burlesco e do humor. Na vida real, os críticos arraigados e avançados na idade não costumam ter graça nenhuma. Dito isto, por seu turno, os bajuladores de toda e qualquer novidade avançados na idade são muitas vezes patéticos. Quando não danosos.

Veja-se o caso do argumento muito em voga na época — e usado por gente com mais do que idade para ter juízo — que insistiu em casar à contestação ao Acordo Ortográfico de 1990 da Língua Portuguesa com uma posição geracional. Jovens pelo sim. Velhos pelo não. Viu-se.

Os seus maiores promotores e defensores, já na altura somando décadas consideráveis, João Malaca Casteleiro, por Portugal, e Antônio Houaiss, pelo Brasil, foram, entretanto, fazer companhia a Billy Wilder e Leonard Cohen, o primeiro em 2020 com 83 primaveras, o segundo em 1999 com idade idêntica. E mesmo descontando o tempo decorrido entre a aprovação do AO pelos deputados da República e a morte dos dois linguistas, mostra-se difícil imaginá-los em 1999 a hastear o texto do Acordo com o mesmo sorriso largo com que o então jovem Daniel Cohn-Bendit encarou a cova dos leões em Maio de 68.

Escusado será dizer que jovens e velhos podem ser igualmente irritantes. Sobre o assunto, nada como ler Diário da Guerra aos Porcos do argentino Adolfo Bioy Casares (Cavalo de Ferro, 22 edição, 2015). E que me perdoem se por acaso repito a recomendação: é assacá-la à idade.

Por falar em Argentina e em Adolfo Bioy Casares, leio que quem morreu foi Maria Kodama, mulher e herdeira de Jorge Luis Borges (grande amigo de Casares), cujos traços asiáticos eram menos acentuados dos que os de Yoko Ono — o que é natural, dado que ambos, mãe e pai de Yoko eram japoneses, enquanto Kodama nasceu de pai alemão e mãe natural de Tóquio imigrada para Buenos Aires. Foi ao ler a notícia da sua morte que me lembrei de um apaixonado espanhol coleccionista de Borges que há muitos, muitos anos — ainda existia a Livraria Castil de Alvalade em Lisboa e o livreiro Miguel Bastos não se tinha apagado para sempre numa malfadada estrada a caminho de Coruche –, após comprar todas as traduções em português do autor de O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, ficou por ali, indiferente ao pó dos livros e ao meu horário de saída, queixando-se de Kodama com uma veemência que Maomé não pôs na condenação do toucinho, nem os fãs dos Beatles nas críticas a Yoko Ono ou outros descerebrados a Salinger.

Todo este intróito, que vai longo e saiu particularmente enlutado, serve, claro, para me antecipar às acusações de catastrofista.

Porque o caso é este: ao mesmo tempo que em Portugal — em Vizela, mais precisamente — se inaugura uma mais do que ridícula estátua a António Guterres — ficamos sem palavras para descrever aquele susto de quatrocentos quilos e dois metros de altura encomendado pela Câmara Municipal a uma empresa amiga, um Guterres com papeira, calças a fugir à polícia e raquitismo nas extremidades –, do outro lado do mundo, o extraordinário David de Miguel Ângelo causa polémica numa escola cristã da Florida, levando à demissão da directora.
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«Foi por vontade de Deus?» [Ana Cristina Leonardo, “Expresso”]

Foi por vontade de Deus?

Ana Cristina Leonardo
“Expresso”, 18 Fevereiro 2017

«Não sei se serve de argumento, mas, assim de repente, parece-me aceitável: se, 27 anos após ter sido acordado, o AO90 continua a provocar desacordo, talvez não tenha sido afinal um bom acordo. Malaca Casteleiro, um dos seus principais obreiros, avançou numa entrevista ao “Observador” com uma explicação substancialmente diferente — e quase enternecedora, diria —, para a contestação teimosa: “Quando se suprimem as consoantes, as pessoas têm saudades das consoantes mudas…”. Saudade! Palavra tão portuguesa cantada por poetas e por Amália: “É o fado da pobreza/ Que nos leva à felicidade/ Se Deus o quis/ Não te invejo essa conquista/ Porque o meu é mais fadista/ É o fado da saudade”. Terá sido Deus a inspirar o Acordo? O linguista não vai tão longe, mostrando-se até bastante humilde no caso do para/arranca. Diz e o jornal transcreve (sic): “Os nossos alunos nas escolas, como ‘pára’ tinha acento, eles tinham a tendência de pôr assento em ‘paras’, ‘paro'”. Já agora, para quê complicar a vida das pessoas com a existência de palavras homófonas em vez de optar de uma vez por uma grafia una? Por exemplo: acento ou assento? Decidam-se! No pressuposto, defendido na entrevista, que o AO serve os infantes (“é mais fácil para as crianças”) e segue a pauta do “Diário da Guerra aos Porcos”, de Adolfo Bioy Casares (o AO “não é para os que estão no último quartel da vida, como eu, é para os que estão no primeiro quartel da vida, para os jovens”), não deixa todavia de parecer injusto que tanto se exija aos falantes adultos; confrontado com: “A maioria das pessoas parece não compreender porque é que [as consoantes mudas] foram suprimidas”, a resposta sai célere: “Não compreendem e não leram a nota explicativa. Se lessem a nota explicativa, refletissem e ponderassem, viam que havia razões”. Ora batatas! Ou há simplificação ou comem todos! Mas o acordista bate o pé. Indigna-se também nas páginas do “Expresso”: “Então, andaram os nossos grandes mestres da Filologia e da Linguística, portugueses e brasileiros, a labutar pela defesa da unidade essencial da língua e agora atraiçoamos esse património?” Traição! Outro fado. No caso, do Marceneiro, que só citamos os maiores. Mas o que mais me surpreendeu foi Malaca Casteleiro afirmar não existir confusão ortográfica: “É curioso, não tenho notado”. De onde concluo: o linguista lê pouco, nem sequer o “Diário da República“. Como o invejo!»

[“Expresso” (edição em papel), 18.02.17. Adicionei “links”]

Uns grelhados e outros assados

«Ana Cristina Leonardo estudou Filosofia. Há muito ligada à edição e jornalismo, trabalhou na Assírio & Alvim e em diversos jornais e revistas. Mantém actualmente uma crónica no Expresso. Publicou em 2008 o livro infantil, ilustrado por Álvaro Rosendo, «Joaninha, a Menina que não Queria Ser Gente» e, em 2018, o romance «O Centro do Mundo». Tem três filhas e dois netos e vive no Algarve com dois cães.» [“Wook”]

Do encanto de uma galinha assada

Ana Cristina Leonardo

“Público” (suplemento “Ipsilon”), 08.07.22

 

 

Cinquenta e quatro anos após a morte de Manuel Bandeira — um reconhecido poeta maior do Modernismo brasileiro — Portugal é o convidado de honra da 26.ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, a decorrer naquela cidade entre 2 e 10 de Julho.

Na informação oficial publicada no site do Instituto Camões, organismo criado em 1992 para a defesa e divulgação da língua e da cultura portuguesas a funcionar sob a alçada do Ministério dos Negócios Estrangeiros — e talvez nesse vínculo administrativo se encontre a explicação para a tenência de aço com que o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, o licenciado em economia Augusto Santos Silva, defendia o Acordo Ortográfico que só seria alterado por cima do seu cadáver, salvo seja… — pode ler-se que a comitiva integra “21 autores de Portugal, de Países Africanos de Língua Portuguesa e de Timor-Leste” a que “irão juntar-se dois renomados ‘chefs’, Vitor Sobral (sic) e André Magalhães”.

Não nos passando pela cabeça que a cultura — nomeadamente a literária — não seja para comer, ainda assim nos espantamos pelo destaque dado aos dois cozinheiros, mesmo se renomados. Afinal, tratando-se de um acontecimento ligado à edição e não a tachos e frigideiras, seria legítimo esperar que o acento fosse posto no nome dos escritores (e já agora em Vítor…) ou, pelo menos, que a lista dos participantes se apresentasse completa: ou há moral, ou comem todos!

Nada a obstar à relação entre estômago e literatura, binómio há muito ilustrado com excelência nos livros do crítico camiliano José Quitério, uma referência de estalo para todos os que nasceram antes da invenção dos pastéis de bacalhau com queijo da Serra ou da exportação dos pastéis de nata para o mundo. Podia referir ainda, provando que nada me move contra a arte da mesa, o hilariante ‘Cabeça, Coração, Estômago’ (Camilo Castelo Branco, Alêtheia, 2016). E há também, claro, aquele panfleto de JulienGracq, adequadamente chamado ‘A Literatura no Estômago’ (Assírio & Alvim, apresentação e tradução de Ernesto Sampaio, 1987) mas aí a salada é outra.

Sem abandonar o tema, é de toda a justiça juntar ao rolo corajoso texto do crítico António Guerreiro, publicado a 9 de Abril de 2011 no semanário Expresso (‘Retrato do Escritor Enquanto Saltimbanco’), a propósito “da edição desse ano do Festival Literário da Madeira, onde se punha em evidência o formidável convívio entre a ‘grande bouffe’ e “a pura substância espiritual” que moveria os promotores do encontro.

Não só de ‘chefs’ nos fala o Instituto Camões. Fica-se igualmente a saber que um dos objectivos essenciais da nossa participação é “promover Portugal como destino de múltiplas experiências de turismo literário”.

Supina!, pensei eu, já a imaginar ‘charters’ de turistas literários a quererem reservar o quarto do Largo do Carmo onde Fernando Pessoa viveu no princípio do século XX (disponível no Airbnb a preços razoáveis). Não será o mesmo do que dormir na cama do poeta na rua Coelho da Rocha, mas esse foi um privilégio reservado a ‘happyfew’ (se considerarmos um privilégio dormir, sob a ameaça de fantasmas, numa cama notoriamente desconfortável…).

Não me esqueci de Manuel Bandeira. Em 1930 inclui no seu livro ‘Libertinagem’ o poema ‘Poética’. Começa assim:

“Estou farto do lirismo comedido / Do lirismo bem-comportado / Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor / Estou farto de lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo / Abaixo os puristas”

E vai por ali fora, espadeirando sem dó nem piedade:

“…Estou farto do lirismo namorador / Político / Raquítico / Sifilítico / De todo o lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.”

Para terminar com

“Quero antes o lirismo dos loucos / O lirismo dos bêbedos / O lirismo difícil e pungente dos bêbedos / O lirismo dos clowns de Shakespeare — Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.”

Que diria hoje Manuel Bandeira do mote da participação portuguesa na Bienal, que, lemos no site do Instituto Camões, traz a assinatura de Valter Hugo Mãe:’ É Urgente Viver Encantado?’

Antes de mais, de onde surge o mote? De uma frase retirada ao ‘As Mais Belas Coisas do Mundo’, livro que é, e reproduzo do portal da editora: “A história de um menino que, dentro do abraço do avô, procura encontrar respostas para os mistérios do mundo. O avô, que tem ar de caçador de tesouros, revela-lhe o maior de todos para curar a tristeza e a despedida: o encanto”.

Cito o mote no seu contexto: “Eu queria ser sagaz, ter perspicácia, estar sempre inspirado. O meu avô pedia que não me desiludisse. Quem se desilude, morre por dentro. Dizia: é urgente viver encantado. O encanto é a única cura possível para a inevitável tristeza”.

Podia agora falar do meu avô que nada me pedia (eu alheada dos meandros da inspiração…), limitando-se ele prosaicamente a passar-me em silêncio nacos vermelhos de melancia sem sementes, mas para voltar a Manuel Bandeira, se o ‘É Urgente Viver Encantado’ não tresanda a “lirismo bem-comportado” que se abata sobre mim uma praga de Alvor e, para quem não conhece, em comparação com as pragas de Alvor, Putin é um copinho-de-leite.

Pergunto: a que ponto chegou a infantilização (ou o aparvalhamento) dos espíritos para que lirismo tão pateticamente raquítico pudesse ser escolhido para mote de um pais com séculos de idade suficientes para ter juízo? E que dizer dos rodriguinhos linguísticos, do tom moralizador, da escrita inspiracional?
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Um “post” com bolinha vermelha no canto

AVISO: a linguagem contida neste “post”
pode ferir a susceptibilidade dos leitores
mais sensíveis (ou lá o que é)

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Dunning-Kruger effect, in psychology, a cognitive bias whereby people with limited knowledge or competence in a given intellectual or social domain greatly overestimate their own knowledge or competence in that domain relative to objective criteria or to the performance of their peers or of people in general. [“Encyclopedia Britannica“]

 

«O Efeito Dunning-Kruger, também designado por “sabedoria dos idiotas”, é uma distorção cognitiva que resulta da ignorância: pessoas que sabem pouco têm excesso de confiança nas suas competências e, nas decisões que tomam, cometem mais erros mas não conseguem reconhecê-los, achando que sabem tudo ou mais do que os outros, porventura mais bem preparados. A ilusão de superioridade não se deve ao conhecimento, mas sim à ignorância. Estamos diante de um paradoxo que os investigadores ilustraram da seguinte forma: “Se alguém for incompetente, não consegue saber que é incompetente.”»

Clara Soares, jornalista.
Revista “Visão”, 30.01.2021

 

«“A frequência de uso dos termos que designam os órgãos sexuais, tanto femininos como masculinos, é relativamente baixa. Palavras que designam o sexo são normalmente banidas da conversação entre gente educada”, escreveu Heinz Kröll em O Eufemismo e o Disfemismo no Português Moderno. Apesar disso, em português, parecem não faltar palavras para as descrever. Uma delas é caralho.»
«Apesar de não se saber ao certo de onde terá vindo a palavra caralho, pensa-se que terá tido origem no espanhol carajo, uma expressão que pode designar um pau ou uma parte específica de um navio — a vigia, o lugar mais elevado de uma embarcação. A palavra, “muitíssimo frequente na Península Ibérica”, pode ter “uma origem ainda anterior à romanização”, defende João Paulo Silvestre.»

Língua Portuguesa: a curiosa origem dos palavrões e das asneiras
© 2022 Vortex Magazine – por VxMagDez 23, 2019 em Cultura

 

Já todos ouvimos, porque o “fenómeno” repete-se infindavelmente, alguém asseverar com inabalável convicção que o vinho português, o queijo português, o azeite português é “o melhor do mundo”. Até o “Sol português” é “o melhor do mundo”, o que não deixa de ser curioso porque assim se nacionaliza, de uma penada, a origem da vida, o Génesis, Apolo (ou Hélio), o esfíngico Rá e a estrela central de “um” sistema em volta do qual giram uns planetas e outras “coisinhas” do género; coisa pouca, portanto, isso “agora não interessa nada”, o Sol há-de ser por força “nosso” porque, para início de conversa, à excepção de todos os outros povos do mundo, nós somos os maiores, os melhores, os mais belos, sãos, saudáveis, honestos, cultos e escorreitos do Universo. Em suma, os melhores em tudo e pronto, não se fala mais nisso. Ele é a cortiça (rolhas e assim), o bacalhau (à Braz, que está na moda, ou à Gomes de Sá, esse genial coronel de 6 dragonas), o mármore (ó Estremoz, ó, mas quais Carrara quais carapuça), a INCM (os melhores selos do mundo, toma, toma), a numismática (dólares?, isso é trocos), o leitão da Bairrada, as queijadas de Sintra, o Grandjó (ó-ó, grande pinga, os franceses são uns toscos) e por aí fora, só maravilhas, os estrangeiros que nos visitam até ficam intimidados, tão esmagador é o colosso lusitano. Portugal é uma arca do tesouro com 561 por 218 quilómetros (e 1993 metros de altura, olha a Estrela, “a maior montanha”, pois claro) e aqui — apenas aqui — podem ser encontradas não apenas 7 mas pelo menos umas 70 maravilhas (fora o resto), o que é de longe record mundial, como também é evidente.

O bom povo português reconhece a si mesmo a paternidade de tais delírios laudatórios mas, ainda assim, convenhamos, de facto o fado português é o melhor fado do mundo, disso podemos ter a certeza absoluta, assim como o galo de Barcelos é também o melhor galo de Barcelos do mundo, há que reconhecê-lo, e outros exemplos deste tipo encontramos por aí aos pontapés — literalmente –, basta ir a uma praia com seixos ou topar com uma pilha de calhaus e chutá-los.

Digamos que, tentando formular o axioma, a quantidade e a intensidade dos panegíricos patrioteiros varia na razão directa da ignorância (ou da iliteracia ou da “falta de mundo”) de quem os emite. O entusiasmo pessoal, neste fenómeno arquetípico do português, manifesta-se por regra com um afã que paradoxalmente entronca na igualmente típica “admiração” tuga por tudo aquilo que é estrangeiro, o que se faz (e usa e come e bebe e escreve e até pensa) “lá fora”. Para os mesmos que asseveram militantemente a excelência do melão pele-de-sapo ou da caralhota de Almeirim, tudo aquilo que vem “lá de fora” é que é bom: jogadores de futebol, actores de tele-novelas, publicitários carapuceiros, evangelistas e carteiristas, cambistas e sambistas, se é estrangeiro então é do melhor que há — porque, dizem os mesmos do melão e da bifana em pão especial, “isto é uma choldra” e os (outros) portugueses são “todos uma cambada de” corruptos, ignorantes e saloios.

Infelizmente, nenhum dos grandes (ou pequenos) vultos da Antropologia teve tempo para estudar um fenómeno — o melhor fenómeno do mundo, escusado será dizer — que afinal define aquilo que é o “ser português” (ser enquanto substantivo, entenda-se, não verbo no infinitivo). Parece que fulanos como Lévi-Strauss ou Malinowsky, por exemplo, estiveram sempre muito ocupados a tratar de umas minudências, o que é incompreensível porque, caso algum deles soubesse sequer onde fica Portugal, devia ter cá vindo para estudar o dito fenómeno. Nem mesmo Desmond Morris, um beef estranhíssimo mais virado para a zoologia, a sociologia e a biologia, nem esse — que ainda hoje anda a visitar jardins zoológicos e recintos naturais de outros primatas — se deu à maçada de vir cá espreitar a macacada indígena.

Mas, váláver, o que tem este relambório todo a ver com o AO90? Bom, certo, falta uma peça: a “lei de Murphy“. Assim, com esta invariável, já deve chegar para qualquer matarruano entender que a ignorância, a bajulação, o primitivismo e, em suma, as punhadas no peito com urros em coro têm tudo a ver com a manobra tuga-zuca, com a aniquilação que os dois bandos pretendem.
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Nas Jezik [por Rui Valente]

Há dias, numa conversa caseira, fui testemunha da enorme influência que a cultura inglesa exerce sobre os mais novos. Ao contar a história de um amigo que se candidatou a um emprego, o meu filho tropeçou no vocabulário — só lhe ocorria qualquer coisa à volta de “aplicou-se para”, numa clara influência do Inglês “to apply for”.

Vem isto a propósito da polémica em torno da enorme pressão a que está actualmente sujeito o Português Europeu, em risco de se descaracterizar completamente por força da enorme penetração de conteúdos brasileiros no nosso país — uma tendência que tem como expoente máximo o fenómeno Luccas Neto.

Embora afecte particularmente os mais novos, esta “brasileirização” está em todo o lado. Nas crianças, é assustadora — no curto espaço de uma geração corremos o risco de ver toda a estrutura do Português Europeu desaparecer, dando lugar à (des)ortografia, à construção frásica, ao vocabulário e até ao sotaque brasileiros. Mas também existe nos adultos, embora de forma mais subtil, muitas vezes sem que os próprios se apercebam. Veja-se, por exemplo, dois artigos consecutivos de Ana Cristina Leonardo no PÚBLICO: no artigo do dia 28 de Janeiro denuncia, e bem, o Acordo Ortográfico, estabelecendo uma ligação entre a sua influência e a crescente estupidificação da campanha eleitoral. Na semana seguinte, num outro texto, referindo-se a uma aplicação para telemóvel, a mesma autora dá preferência ao termo “aplicativo” (em Português de Portugal: aplicação).

Estranhamente, parece haver, entre os “influenciados”, quem desvalorize esta influência brasileira — a começar pelos pais das próprias crianças. Por um lado, dizem, essa influência sempre existiu. É anterior às próprias telenovelas brasileiras e nunca veio daí mal ao mundo. Por outro lado, acrescentam, não é pior do que a influência do Inglês. Há até quem diga que é melhor, referindo-se aos termos ingleses como “estrangeirismos”. Como se “aplicativo” e outras expressões similares não tivessem origem, também elas, noutro país.

Não é fácil desmontar este raciocínio porque a argumentação tem um fundo de verdade. Sim, a influência brasileira sempre existiu. Mas também sempre existiu entre todas as Línguas, em maior ou menor grau. Em larga medida, é desta forma que as Línguas evoluem.

A relação entre as Línguas do mundo sempre foi fluida. Quaisquer duas Línguas estão, ao mesmo tempo, a aproximar-se e a afastar-se, embora o saldo natural deste movimento seja sempre favorável ao afastamento. Português e Inglês, por exemplo, aproximaram-se no momento em que ambas escolheram a palavra “internet” para definir “rede informática à escala global”. Mas a tendência natural é a do afastamento.

Qual é então o problema da influência brasileira? Desde logo, há o facto de essa influência estar a acontecer em doses industriais. Mas, acima de tudo, estamos perante uma influência que não ocorre de forma espontânea. Pelo contrário, tem um cunho forte de imposição, pela aplicação da lei do mais forte. A influência do inglês, por grande que seja, não ameaça a nossa identidade — o meu filho jamais tentará convencer alguém de que “aplicar-se para um emprego” é uma expressão portuguesa. Pelo contrário, no caso da influência brasileira, há um risco real de termos de “debater” com terceiros a propriedade de expressões como “registro”, “econômico” ou “pantorrilha”.

Com a influência brasileira, hoje em dia, e residindo eu em Portugal, já tive de preencher formulários de “registro” numa actividade. Na internet, pedem-me que me “cadastre”. E, numa consulta a uma empresa portuguesa, recebi uma proposta para a realização de um estudo “socio-econômico”.

O que é que isto tem que ver com o Acordo Ortográfico? Tudo.

Na era pré-acordo, não passaria pela cabeça de ninguém, numa empresa portuguesa, escrever a um cliente uma carta em Português do Brasil.

Mas imaginemos, por absurdo, que isso acontecia. Qual seria a minha reacção? Sem o Acordo Ortográfico, o meu raciocínio só podia ser um: por alguma razão que não compreendo, uma empresa decidiu escrever-me em Português do Brasil. E, com um encolher de ombros, seguiria em frente.

Na era pós-acordo as fronteiras desapareceram. Pode muito bem acontecer que quem me escreve em Português do Brasil esteja convencido — e a tentar convencer-me — de que o faz em “Português”, um Português “universal” que dizem existir agora e que mais não é do que Português do Brasil.

Com a imposição do Acordo Ortográfico estamos, portanto, perante mais um fenómeno de engenharia social, de cariz eminentemente político, em que a Língua é usada não como meio de comunicação mas como forma de construir — ou destruir — identidade.

E, como sempre, quando a política mete as mãos na Língua — seja por estratégia geo-comercial, seja por conflito étnico ou religioso, seja por absoluta falta de senso — as consequências não são boas. Regra geral, acontece uma de duas coisas: a substituição forçada de uma Língua por outra, ou a criação de duas Línguas “diferentes”. Veja-se o caso do Bósnio, do Sérvio e do Croata. São apenas variantes do Servo-Croata, perfeitamente inteligíveis entre si. No entanto, num cenário de pós-guerra na ex-Jugoslávia, Bósnia-Herzegovina, Croácia e Sérvia entenderam por bem sublinhar as pequenas diferenças existentes, apresentando-as agora como três Línguas distintas. É frequente encontrar-se cartazes “triligues” onde se vê a mesma coisa escrita três vezes, sendo que a única diferença é que o Sérvio, que também pode ser escrito com caracteres latinos, está geralmente escrito em cirílico. São experiências “contra-natura” que tendem a correr mal: na Croácia, a legendagem de filmes Bósnios foi abandonada depois de ter sido ridicularizada e as pessoas da região, independentemente da sua origem, limitam-se a usar a expressão “Nas Jezik” (a nossa Língua) quando se referem ao idioma que usam.
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